quinta-feira, 20 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 06

Hoje vou apresentar dois sonetos da Marquesa de Alorna (1750-1839) e um trecho da Cruz mutilada de Alexandre Herculano (1810-1877). Faz sentido juntar estes autores, pois Herculano tem para com a Marquesa confessado débito (a Marquesa ajudou-o).
O texto de Herculano é um texto romântico, de um homem que entrou em conflito com a Hierarquia católica. Não é assim com a Marquesa. E sobretudo os seus textos de carácter místico têm um tom de devoção filial e íntima que encantam. Deixou também uma extensa e muito bela
Paráfrase dos versos de Santa Teresa de Jesus (Santa Teresa de Ávila), que um dia espero apresentar.
Esta Marquesa foi uma mulher muito culta, politicamente empenhada, que por isso sofreu logo na infância e mais tarde chegou a viver muitos anos no exílio, na Inglaterra.
O soneto que agora vou ler é o primeiro dum conjunto de dois que tem por título
A Jesus Cristo.

A Jesus Cristo

Se a dar-Vos morte, ó Deus, um só pecado
Bastou que Adão tivesse cometido,
Eu, que em tantos, Senhor, hei delinquido,
Quantas mortes Vos tenho renovado!

Adão, de um só delito horrorizado,
O deixou no seu pranto submergido;
Porém meu coração endurecido
Não duvidou mil vezes ser culpado.

Eu fui, Senhor, eu fui quem, descontente
Da morte que Vos deram sem piedade,
O peito Vos rasguei mais cruelmente.

Se não lavam a minha iniquidade
As lágrimas que choro amargamente,
Ai de mim, na espantosa eternidade!

Nós estamos a caminho da Páscoa e podíamos aprender neste poema a ter muito mais respeito pela Cruz, pelo sofrimento atroz do Salvador. A mensagem deste soneto está muito próxima da mensagem principal da Beata Alexandrina. Mas, pessoalmente, gosto mais deste outro soneto. Intitula-se: Achando-se a autora doente, em perigo de vida.

Achando-se a autora doente, em perigo de vida

Este ser que me deu a natureza,
Vai desorganizando a enfermidade;
Sinto apagar da vida a claridade,
Doma as corpóreas forças a fraqueza.

Vai crescendo em minha alma a fortaleza,
Quando cresce do mal a intensidade;
As portas áureas me abre a Eternidade
E lá cessam cuidados e tristeza.

Vou amar Quem somente é sempre amável,
Em oxigénias luzes abrasar-me,
Nunca errar nem temer gente implacável.

Vou nos jardins celestes recrear-me
E no seio de um Deus justo, adorável,
A tudo o que me falta associar-me.

Há aqui uma saudade do Céu que se encontra só em textos de profunda vivência religiosa, como, por exemplo, em certo poema de Camões. Esta confiança sem exageros, esta ternura dita em palavras simples e exactas, esta ânsia da partida que torna a morte um triunfo faz-me admirar este poema.
Depois da voz feminina, sensível da Marquesa da Alorna, vem o tom mais empolado de Herculano. Mas como ele canta as excelências da Cruz, ouçamo-lo neste tempo em que a Quaresma já vai adiantada.


Cruz mutilada
(fragmento inicial)

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém quando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,
Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,
E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

Isto até é bonito, mesmo que possa ser mais literatura, lirismo que religiosidade autêntica.

Sem comentários: