terça-feira, 18 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 04

O poema que trago desta vez é de Bocage. Em Bocage, que morreu em 1805 com apenas 40 anos, pode-se dizer que coexiste um poeta grandiloquente e culto que trata temas amorosos, da actualidade ou outros; um poeta repentista, popular e satírico; e um poeta religioso entusiasta.
A cantata que vou ler intitula-se
À Puríssima Conceição de Nossa Senhora e consta de uma primeira parte em verso sem rima, longo, embora a espaços intercalados por versos mais breves, e uma parte final em quadras rimadas muito simples.
Na primeira começa por nos contar uma grandiosa visão de Nossa Senhora; a seguir descobre-se que aquela excelsa figura vai calcar aos pés o dragão infernal, como no painel do altar-mor da Matriz. Por muito que a serpente se defenda, acaba vencida sob a força misteriosa, mas indomável da Imaculada. Este combate concretiza o anúncio que Deus faz à serpente no princípio do Génesis de que a mulher lhe «esmagará a cabeça».
Comecemos pela majestosa, etérea visão da Imaculada:


Que espectáculo, ó céus! Eu velo?... Eu sonho?...
Que diviso!... Onde estou!... Purpúrea nuvem
Ante os olhos atónitos me ondeia
E chuveiros de luz despede à terra!
Mais bela que o fulgor que ao sol percorre,
Alta matrona augusta,
Do vapor luminoso
Que os Zéfiros detêm nas ténues plumas,
Quão risonha contempla o baixo mundo!
Áureas estrelas congregadas brilham
No rútilo diadema
Que a fronte majestosa Lhe guarnece;
Áureas estrelas semeadas brilham
Nas roçagantes vestes,
Cor do estivo clarão que filtra os ares!
De alados génios cândida falange
Reverente A ladeia,
E pelas níveas dextras balançados,
Pingue, flagrante aroma, em honra à diva,
Os fumosos turíbulos derretem…

É natural que as pessoas tenham alguma dificuldade em entender esta linguagem, mas ela fala duma visão da Imaculada que vem numa nuvem, conduzida por anjos, que A incensam.
Segue-se agora o combate em que o dragão infernal é derrotado:


Mas que feroz dragão lhes jaz às plantas,
Sangue a boca medonha, os olhos fogo!...
Rábido arqueja, túmido sibila,
Baldadas forças prova
Contra o pé melindroso
No colo inerme, a cerviz calcada,
Que rubras conchas escabrosas forram:
Enrosca, desenrosca a negra cauda
E em hórridos arrancos desfalece…
Oh, triunfo! Oh, mistério! Oh, maravilha!
Oh, celeste heroína! A sacra turma,
Os entes imortais que Te rodeiam
Modulam tua glória em altos hinos
Que entre perfumes para os astros voam…
Eis no leito arenoso as vagas dormem,
Rasas cedendo à música divina:
Pio ardor pelas fibras me serpeia
E encurvado repito os santos versos:

Obtida a vitória, o poeta entoa um canto triunfal. Ele poderá ser adaptação dum hino litúrgico que eu não sei identificar. É inteiramente diferente do que precedeu: linguagem muito simples, em quadras de verso curto e rimado:

Ó Virgem formosa,
Que domas o Inferno,
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.

Ilesa notaste
Do mundo o naufrágio,
Da culpa o contágio
Por ti não lavrou.

Nas tuas virgíneas
Entranhas sagradas,
Do Céu fecundadas
O Verbo encarnou.

A grande vitória
Do género humano
Contra este tirano
De Ti começou.

Depois de lograres
Triunfo completo,
Cumprido o projecto
Que o Céu meditou,

Cresceram nos astros
Os vivas e os cantos,
E as fúrias, os prantos
O abismo dobrou.

Ó Virgem formosa
Que domas o Inferno
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.

Duas observações sobre estes versos: a quadra inicial repete-se a concluí-los; em cada quadra o segundo verso rima sempre com o terceiro, sendo brancos o primeiro e o quarto, que termina sempre em ou.
Repito, a cena que Bocage evoca é a que está representada no painel do altar-mor da Matriz; aquela pintura, se for de origem, é anterior de alguns anos, mas não muitos a este poema.
O Bocage deste poema não é bem aquele a que as pessoas estão habituadas.

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