quarta-feira, 16 de julho de 2008

MOMENTO POÉTICO 24

Este momento poético final vai ser preenchido com um importante poema da Marquesa de Alorna; é um poema de certa extensão e que merece leitura completa; compõe-se de treze oitavas decassilábicas, que rematam sempre por um refrão, que é um paradoxo e que diz: “Que me sinto morrer, por ir vivendo”.
Ao lê-lo, parece-nos por vezes ouvir a voz da Beata Alexandrina.

PARÁFRASE DOS VERSOS DE SANTA TERESA DE JESUS

Amor, delícia de alma a Deus unida,
Do mesmo Deus suavíssimo atractivo,
Que o coração liberta e dá motivo
A saudades cruéis, enquanto há vida!
Tal dor causa o saber que só morrendo
De Deus pode gozar quem a Deus ama,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Quanto custa esta vida dilatada!...
Cuido que a rastros levo duros ferros.
São cárceres meus dias, são desterros,
Do bem, que tanto adoro, separada.
Vou com ânsias de amor desfalecendo;
E sem chegar ao fim, padeço tanto,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Ai que vida tão dura, tão amarga,
Sem tomar do meu Deus inteira posse!
Se o puro amor em que ardo é sempre doce,
Cansa, aflige a esperança, quando é larga.
Acode-me, Senhor, vai desfazendo
O pesado grilhão que inda me prende,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Co'a certeza do bem que a morte alcança
Vou sustentando a vida; mas entendo
Que o mísero mortal só vê, morrendo,
Cumpridas as promessas da Esperança.
Responde a meus clamores, vem correndo,
Morte feliz! Não tardes, não vaciles,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Vida, que és tu? Suplício desumano.
Observa o vivo amor que me devora:
Perdendo-te, a existência então melhora
E o tempo que me dás é meu tirano.
Encobrindo-me o bem que só pretendo,
Me agitas, despedaças, de tal modo,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Vida que não acaba, em Deus imersa,
Essa somente é vida verdadeira.
Enquanto não termina esta primeira,
Não se goza destoutra, tão diversa.
Porque, ó vida cruel, me estás detendo,
Se a cada instante expiro e tanto sofro,
Que me sinto morrer, por ir vivendo?

Como retribuirei tanta fineza
A Deus, que vive em mim? É pouco amá-Lo;
Devo perder a vida por gozá-Lo.
Se não cabe este bem na Natureza,
Foge, importuna Vida; vai cedendo
Às ditas imortais o teu domínio,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Meu Deus, que dura ausência, que tormento!
Que prolongada morte é minha vida!
Em dúvidas, em riscos submergida,
De terrores cercado o pensamento,
Muito mais do que morte estou sofrendo.
Tem dó de mim, Senhor! Eu mesma o tenho,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Qual peixe que sai de água, a quem se nega
Ir ao próprio elemento restaurar-se,
Que arqueja, sem poder nunca escapar-se
E somente acabando é que sossega,
Assim, meu Deus, na terra vou sofrendo:
Suspiro, chamo, arquejo, e tanto tardas,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Se me dás, generoso, algum alento,
No divino manjar que me sustenta,
Também se dobra a dor e me atormenta
O véu com que Te encobre o Sacramento.
Quero ver-Te, Senhor, e não Te vendo,
Torno a desfalecer; e tanto anelo
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Porém quando, Senhor, me reanima
A esperança de ver-Te e de gozar-Te,
Vem um susto cruel por outra parte
E que posso perder-Te então me intima.
Posso, durando mais, ir-Te perdendo?...
Que susto, que terror! Meu Deus, piedade,
Que me sinto morrer, por ir vivendo!

Desta vida arriscada me liberta,
Concede-me a existência desejada;
Solta-me, ó Deus! Da terra desligada,
Minha alma co'a ventura logo acerta.
Vê que do mundo nada já pretendo,
Que sem Ti, ó meu Deus, viver não posso,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Se são os meus pecados que demoram
Esse ditoso golpe que Te peço,
Ao ver esses abismos estremeço
E meus olhos a vida e morte choram.
Doce Amor da minha alma, vem descendo!
Abre-me o Céu, liberta-me da vida,
Que me sinto morrer, por ir vivendo!

Com isto termino.
Durante quase meio ano trouxe para aqui um pouco mais do que vinte e cinco autores, no geral vozes muito representativas da poesia nacional. Os poemas foram de grande qualidade. A variedade temática também foi notável.
Verdadeiramente, quando se olha para a grandeza destes textos, as coisas mesquinhas que se dizem contra o Cristianismo ficam reduzidas à sua pequenez. Porque, como disse Camões, “o melhor de tudo é crer em Cristo”.

MOMENTO POÉTICO 23

Este penúltimo momento poético vai ser mariano, com um poema de Gil Vicente e outro do P.e José Meira Veloso.
Gil Vicente, que nasceu aí por 1470 e morreu em 1536, deixou nas suas obras de teatro muitos poemas de tema religioso. Hoje vou ler uma sua paráfrase ao hino litúrgico latino O Gloriosa Domina, isto é, “Ó Gloriosa Senhora”. Actualizei a escrita duma ou outra palavra, sobretudo a Madre para Mãe. Vamos ouvir:

Ó GLORIOSA SENHORA DO MUNDO

Ó gloriosa Senhora do mundo,
Excelsa Princesa do Céu e da Terra,
Formosa batalha de paz e de guerra,
Da Santa Trindade secreto profundo!

Santa esperança, ó Mãe de Amor,
Ama discreta do Filho de Deus,
Filha e Mãe do Senhor dos Céus,
Alva do dia com mais resplendor!

Formosa barreira, ó alvo e fito,
A quem os Profetas direito atiravam,
A Ti gloriosa os Céus esperavam,
E as Três Pessoas, um Deus infinito.

Ó cedro dos campos, estrela-do-mar,
Na serra ave Fénix, uma só amada,
Uma só sem mácula e só preservada,
Uma só nascida, sem conto e sem par!

Do que a Eva triste ao mundo tirou
Foi o teu fruto restituidor;
Dizendo-te ave! o embaixador,
O nome de Eva te significou.

Ó porta dos paços do mui alto Rei,
Câmara cheia do Espírito Santo,
Janela radiosa de resplendor tanto,
E tanto zelosa da divina Lei!

Ó mar de ciência, a tua humildade
Que foi senão porta do céu estrelado?
Ó fonte dos Anjos, ó horto cerrado,
Estrada do mundo para a Divindade.

Quando os Anjos cantam a glória de Deus,
Não são esquecidos da glória tua;
Que as glórias do Filho são da Mãe sua,
Pois reinas com Ele na corte dos Céus!

Pois que faremos os salvos por Ela,
Nascendo em miséria, tristes pecadores,
Senão tanger palmas e dar mil louvores
Ao Pai, ao Filho e Espírito e a Ela?

A gente às vezes só conhece um Gil Vicente muito popular. Aqui, como em muitos outros lugares, ele mostra que é um homem muito culto e bom poeta.
Agora um poema de redacção poveira, intitulado A Avezinha do Eremita. O seu autor, o P.e Meira Veloso, não nasceu na Póvoa, mas cá viveu muito tempo. Chegou a emigrar para o Brasil, onde ensinou línguas e filosofia; na Póvoa, foi professor no Colégio Povense, além de se dedicar ao jornalismo e à poesia. Esteve na origem do escutismo na Póvoa de Varzim, juntamente com o Dr. Abílio Garcia de Carvalho. Faleceu com 52 anos, aí por 1935.

A avezinha do eremita

(Canção popular alemã)

Houve outrora um eremita
Cuja maior alegria
Era dizer esta prece:
- Ave Maria!

Tinha consigo na cela
Uma ave que todo o dia
Cantava como o seu dono:
- Ave Maria!

Duma vez fugiu a ave
Da sua prisão sombria
E foi cantar p’ra um cipreste:
- Ave Maria!

Triste, o asceta a perseguiu;
A avezinha lhe fugia…
E por fim subiu cantando:
- Ave Maria!

Subiu, subiu nos espaços;
Mas um abutre descia…
Caçou-a e ela gritou:
- Ave Maria!

Espantado o fero abutre
As suas garras abria…
Jamais ouvira cantar:
- Ave Maria!

Salvou-se a pobre avezinha
E então com mais alegria
Fez ouvir o doce canto:
- Ave Maria!

Estava o eremita na cela
Submerso em melancolia.
Entra a avezinha, e os dois cantam:
- Ave Maria!

Virgem, não deixaste o abutre
Matar a ave que dizia
A linda oração sublime:
- Ave Maria!

Pois também do pecador
Tu serás defesa e guia
Quando ele rezar contrito:
- Ave Maria!

É um texto muito simples e muito bonito.

MOMENTO POÉTICO 22

Camões, já o disse, tem muita poesia de tema religioso. Vou ler hoje dois textos de carácter hagiológico, isto é, em que se fala de santos. O primeiro é um soneto em louvor de S. Francisco de Assis. Vamos ouvir:

Como louvarei eu, Serafim santo,
Tanta humildade, tanta penitência,
Castidade e pobreza e paciência,
Com este meu inculto e rude canto?

Argumento que às musas põe espanto,
Que faz muda a grandíloqua eloquência,
Ó imagem que a divina Providência
De Si viva em vós fez pera bem tanto!

Fostes de santos uma rara mina;
Almas de mil a mil ao Céu mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.

E não roubáveis só com a doutrina
As vontades mortais, mas a divina,
Pois os seus rubis, cinco lhe roubastes.

A imagem dos cinco rubis refere-se aos estigmas, às marcas das cinco chagas de Cristo, com o seu sangue, que S. Francisco teve impressos.
O segundo texto é um fragmento dum poema sobre Santa Úrsula. Esta santa é alemã, de Colónia. Verdadeiramente, quase tudo na sua vida está envolto em lenda. Mas isso não é tão importante como possa parecer: se houve tantos mártires anónimos, ela, e outros e outras como ela, representa-os.
Esta mártir mereceu grande veneração no mundo anglo-saxónico. Camões escreveu sobre ela uma biografia poética, em estrofes de oitava-rima, como as d’Os Lusíadas. As estrofes que vou ler mostram-no-la momentos antes de avançar para o martírio.
Camões é o poeta do amor, por excelência. Embora aqui tenhamos o amor divino, a sua voz está tão afinada como é costume, se não melhor.
Repare-se que os dois últimos versos das estrofes são um refrão (repetem-se) e dão a ideia geral do conjunto:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Há aqui um jogo de conceitos: “o que desejo” e “o que não vejo” são naturalmente o rosto de Cristo glorioso.

Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida:
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que de amor cheio e de brandura,
De amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e formosura,
Não pode nunca haver coisa formosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Uma vida tão fraca e duvidosa:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que por amor Te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do Céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que de amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor Te satisfazes:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que com amor me cativaste;
(Se livre pode ser quem não cativas)
Amor, que em tais prisões m'asseguraste
As esperanças dantes fugitivas:
Amor, que suspirando m'ensinaste
A derramar por Ti lágrimas vivas:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja. Amor, o que não vejo?

É um texto muito poético, muito bonito, mas também muito conceituoso, ao modo por exemplo de Amor é fogo que arde sem se ver ou de certos poemas de S. Teresa de Ávila.

MOMENTO POÉTICO 21

Hoje vou ler três pequenos poemas de um sacerdote que foi pároco no nosso arciprestado, o P.e António Martins de Faria. Ele nasceu em Barcelos, a 12/9/1837, e faleceu na Póvoa de Varzim, em casa dum seu irmão, em 16/10/1913, com 76 anos.
Além de pároco, foi jornalista, orador e poeta.
Como pároco, esteve à frente de uma freguesia barcelense, antes de vir para Balasar. Dali foi para Beiriz, onde se manteve quase trinta anos.
Fundou um jornal em Barcelos, pelo que deve ter dado colaboração à imprensa ainda no período em que se encontrava em Balasar. Colaborou nos jornais poveiros Estrela Povoense e n’A Propaganda. Afora os escritos saídos em variada imprensa periódica, publicou um opúsculo sobre Santa Eulália de Mérida, em 1894, e dois pequenos livros de poemas, Vozes de Alma (1910) e Últimas Vozes (1913). Nas Vozes de Alma, republica o poema sobre Santa Eulália.
O poema que vou ler, em quatro quadras, intitula-se Amor de Deus:

Amor de Deus

Ou me sente, à noite, à mesa,
Os meus livros folheando;
Ou ande o meu giro dando
De manhã pela devesa –

Ou suba, com sol, ao monte,
Para ver rolar o mar;
Ou desça ao val’, com luar,
Para ouvir gemer a fonte –

Ou a colher violetas
Me quede no meu jardim;
Ou, feito criança, enfim,
Corra atrás das borboletas –

Em toda a parte, Senhor,
Como diz um grande santo,
Me sinto com doce encanto
Cercado do teu amor.

O P.e António de Faria pelos vistos era um bom conversador e, como aqui diz, levava a vida sem grandes dramas, de um modo simples.
O próximo poema intitula-se Existência de Deus. O autor afirma a existência de Deus apoiando-se no espectáculo da criação, pois, como escreve, não pode haver “obras sem obreiro”. O mundo não se criou a si mesmo nem muito menos estabeleceu as regras que o governam.

Existência de Deus

Ao ver o céu, a terra, o mar, o monte,
Num Ser Omnipotente,
Que foi e fora sempre antes de tudo,
Que forma deste mundo o conteúdo,
Eu creio firmemente.

Com Ele pode o homem, quando queira,
De tudo dar razão,
Desde o ente mais vil, em seu conceito,
Até ao ser mais nobre e mais perfeito
De toda a criação.

Com Ele, o ser do sol, o ser da lua,
Da luz e mais do ar;
Com Ele, os vendavais, as maresias,
Os frios, os calores, noites e dias,
Bem pode perscrutar.

Unido ao corpo seu estreitamente,
Um outro ser também
Com Ele, pode o homem descobrir,
Capaz de bem amar e bem servir
Na terra o Sumo Bem.

Ao contrário, porém, sem Ele, o Mestre
De todo o magistério,
O mundo para mim, p’ra minha mente,
Foi, é e será eternamente
Insondável mistério.

Para se crer, sem Ele, em tantos seres,
Fora mister primeiro
Ao estulto ateísta demonstrar
Que é dever da razão acreditar
Em obras sem obreiro.

Mas é impossível; e portanto
Num Ser Omnipotente,
Que foi e fora sempre antes de tudo,
Que forma deste mundo o conteúdo,
Eu creio firmemente.

A estrofe final do poema repete quase toda a primeira, reiterando assim a afirmação da fé do poeta.
O último poema é mariano. O autor parte da invocação da Ladainha de Nossa Senhora em que Ela é declarada Mãe Puríssima (Mater Purissima, em latim).

Mater Purissima
(Mãe Puríssima)

Ladainha

Se à Virgem, Mãe da Pureza,
Querem dar provas de amor,
Dê-lhe o céu o seu fulgor
E a terra sua beleza.

Dê-lhe o sol seus arrebóis
E as suas per’las o mar;
Dê-lhe a lua o seu luar
E o seu canto os rouxinóis.

Dê-lhe a fonte os seus cristais
E as suas flor’s o vergel;
Dê-lhe a colmeia seu mel
E seu perfume os rosais.

Dê-lhe o poeta canções;
Dê-lhe quadros o pintor;
E vós, almas do Senhor,
Dai-lhe os vossos… Corações.

Toda a criação deve oferecer o seu melhor à Mãe Puríssima.

MOMENTO POÉTICO 20

Jerónimo Baía foi monge do Mosteiro de Tibães, próximo de Braga. Tibães não é um local de visita popular nem é propriamente um monumento muito vistoso, mas historicamente foi muito importante.
Jerónimo Baía professou lá, no séc. XVII, mas não viveu sempre naquele mosteiro beneditino. Está sepultado em S. Romão de Neiva.
Jerónimo Baía não é um escritor simpático, nem pelo barroco dos seus poemas nem por ter tratado temas pouco próprios de um monge. O poema que vou ler intitula-se Falando com Deus. Está cheio de antíteses, que de facto são paradoxais, joga muito no paralelismo, e conclui com um jogo der palavras, o chamado quiasmo. Mas vamos vê-lo:

Falando com Deus

Só Vos conhece, Amor, quem se conhece;
Só Vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não Vos ofende,
E só Vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em Vós floresce;
Só é senhor de si quem se Vos rende;
Só sabe pretender quem Vos pretende,
E só sobe por Vós quem por Vós desce.

Quem tudo por Vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em Vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só Vos pode amar o que Vos sabe,
Só Vos pode saber o que vos ama.

E agora, um longo poema de Alexandre Herculano, intitulado Deus. Herculano gosta do grandioso e é o que aqui temos.

DEUS

Nas horas do silêncio, à meia-noite,
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a Terra e os mares rugidores,
E os abismos do Inferno.
Pela amplidão dos Céus meus cantos soem,
E a Lua resplendente
Pare em seu giro, ao ressoar nest'harpa
O hino do Omnipotente.

Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vácuo as solidões enchia
De Deus a imensidade,
Ele existia, em sua essência envolto,
E fora dele o nada:
No seio do Criador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
De Jeová, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos solta o Senhor:
Surge o Sol, banha a Terra, e desabrocha
Nesta a primeira flor:
Sobre o invisível eixo range o globo:
O vento o bosque ondeia:
Retumba ao longe o mar: da vida a força
A natureza anseia!

Quem, dignamente, ó Deus, há-de louvar-Te,
Ou cantar Teu poder?
Quem dirá de Teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da Criação; quando os tesouros
Da neve amontoaste;
Quando da Terra nos mais fundos vales
As águas encerraste?!

E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com dextra poderosa,
Fez, por lei imutável, se librassem
Na mole ponderosa?
Onde existia então? No tipo imenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Ele
Na Terra e nas alturas!
Oh, quanto é grande o rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,
Da tarde a viração!
Por Sua providência nunca, embalde,
Zumbiu mínimo insecto;
Nem volveu o elefante, em campo estéril,
Os olhos inquieto.
Não deu Ele à avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o sol da Primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Ele à gazela amplos desertos,
Ao certo a amena selva,
Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,
No prado ao touro a relva?
Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,
Consolação e luz?
Acaso em vão algum desventurado
Curvou-se aos pés da Cruz?
A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio
No dia da aflição,
Quando pesa sobre ele, por seus crimes,
Do crime a punição.

Homem, ente imortal, que és tu perante
A face do Senhor?
És a junca do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o velho pinheiro, campeando
Entre as neves alpinas:
Quem irá derribar o rei dos bosques
Do trono das colinas?
Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raízes
Aos ares lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao sol voltando,
Medonho crocodilo.
De seus dentes em roda o susto habita;
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
A boca afogueada:
Qual duro arnês de intrépido guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os últimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado;
Porém, se Deus mandou,
Qual do norte impelida a nuvem passa,
Assim ele passou!

Teu nome ousei cantar! Perdoa, ó Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos hinos,
Mas são hinos de amor.
Embora vis hipócritas te pintem
Qual bárbaro tirano:
Mentem, por dominar com férreo ceptro
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio! Recear-te
É maldizer-te, ó Deus;
É o trono dos déspotas da Terra
Ir colocar nos Céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existência
Tranquilo, e sem temor, à sombra posto
Da Tua Providência.

Alexandre Herculano era um homem muito culto e o poema ressente-se disso. Fala-se de Jeová (a forma correcta é Javé, sabemo-lo melhor hoje), da liberdade, usam-se palavras menos comuns. Mas o texto não deixa de ter o seu encanto, mesmo como documento dum momento de desorientação religiosa.

terça-feira, 17 de junho de 2008

MOMENTO POÉTICO 19

Na nossa história há pelo menos dois homens notáveis com o nome de João de Deus: S. João de Deus, que é sem dúvida um dos nomes mais extraordinários do nosso passado, embora quase ninguém dele fale, e o poeta João de Deus.
Falemos agora deste último. Ele tem um lugar muito especial na nossa cultura. Quando se discutiam as ideias mais loucas sobre como ensinar as crianças a ler a contar, ele apresentou um livro inovador e de grande sucesso, ajustado ao objectivo em vista, a Cartilha Maternal. O livro da primeira classe por onde aprendi a ler não era a Cartilha Maternal, mas inspirava-se nela. Os contemporâneos de João de Deus tiveram-no em conta de grande poeta.
Vamos ver dele dois poemas. O primeiro intitula-se Deus?

DEUS?

Quem me terá trazido a mim suspenso,
Atónito, alheado… ou a quem devo,
Enfim, dizer que em nada mais me enlevo,
A ninguém mais do coração pertenço?...

Se desço ao vale, ao alcantil me elevo,
Quem é que eu busco, em que será que eu penso?
És tu memória de horizonte imenso
Que me encheu alma dum eterno enlevo?...

Segues-me sempre… e só por ti suspiro!
Vejo-te em tudo… Terra e Céu te esconde!
Nunca te vi… cada vez mais te admiro!

Nunca essa voz à minha voz responde…
E eco fiel até do ar que respiro,
Sinto-te o hálito!... Em minha alma ou onde?


O segundo é uma paráfrase do Pai-nosso. Já tínhamos encontrado outras paráfrases, mas nenhuma desta importante oração evangélica.

PAI-NOSSO

Pai nosso, de todos nós,
Que todos somos irmãos:
A ti erguemos as mãos
E levantamos a voz.

A ti que estás no Céu
E nos lanças com clemência,
Do vasto, estrelado véu
Os olhos da Providência,

Bendito, santificado
Seja o teu nome, Senhor!
Inviolável, sagrado
Na boca do pecador!

E venha a nós o teu Reino!
Acabe a vil cobiça!
Reine o amor, a justiça
Que pregava o Nazareno,

De modo que seja feita
A tua santa vontade,
Sempre a expressão perfeita
Da justiça e da verdade!

Seja feita assim na Terra
Como no Céu, onde habita
Esse cuja mão encerra
A criação infinita!

O pão-nosso nesta lida
De cada dia nos dá…
Hoje, e basta; a luz da vida
Quem sabe o que durará?

E perdoa-nos, Senhor,
As nossas dívidas; sim!
Grandes são, mas é maior
Essa bondade sem fim!

Assim como nós (se é dado
Julgar-nos também credores),
Perdoamos de bom grado
Cá aos nossos devedores.

E não nos deixeis, bom Pai,
Cair nunca em tentação;
Que o homem, por condição,
Sem o teu auxílio cai!

Mas tu que não tens segundo,
Mas tu que não tens igual,
Dá-nos a mão neste mundo,
Senhor, livra-nos do mal!

Eu agora estou a caminhar para o fim do momento poético. Ainda o manterei durante Julho, mas depois acaba. E fica-me pena por não trazer para aqui nenhuma poesia litúrgica recente, porque há-a de muita qualidade. Por isso vou ler umas quadras de Natal que são mais populares que litúrgicas, neste momento em que estamos no solstício do Verão e em que celebramos o nascimento de S. João Baptista. Daqui a seis meses, no solstício do Inverno, celebraremos o Natal do Salvador.

Alegrem-se os céus e a terra

Alegrem-se os céus e a terra,
Cantemos com alegria:
Já nasceu o Deus-Menino,
Filho da Virgem Maria!

Entrai, entrai, pastorinhos,
Por esse portal sagrado,
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas deitado!

Em Belém à meia-noite,
Meia-noite de Natal,
Nasceu Jesus no presépio,
Maravilha sem igual.

Ai, que menino tão belo,
Ai, que graça que tem,
Ai, que tanto se parece
Com a Virgem, sua Mãe!

MOMENTO POÉTICO 18

Hoje temos dois rimances, isto é, duas histórias em verso, muito antigas, cavaleirescas, mais ou menos cortesãs. Podem vir do séc. XV. O primeiro é a outrora célebre Nau Catrineta, o segundo o Rimance de Dona Silvana.
Este género de poemas foi durante muito tempo de tradição oral, talvez ao modo do que se passou com as danças e cantares folclóricos, que também terão começado por ter origem cortesã ou fidalga. Em Portugal, quem primeiro cuidou da sua recolha foi o Cavaleiro de Oliveira, no séc. XVIII; no século seguinte Garrett continuou a tarefa, como a continuou mais tarde Teófilo Braga e outros. A ideia inicial da recolha foi romântica, como o aconteceu na Alemanha com os irmãos Grimm.
Os dois são poemas moralizantes e em ambos encontramos o que alguns chamam o maravilhoso cristão, isto é, a intervenção sobrenatural, e daí se enquadrarem na temática religiosa. No primeiro essa intervenção é clara, no segundo quase só sugerida. É interessante notar que a Nau Catrineta envia para a época das Descobertas marítimas.


NAU CATRINETA

Lá vem a Nau Catrineta,
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia,
Que iam na volta do mar.
Deitaram sola de molho,
Para o outro dia jantar.

Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitaram sortes ao fundo,
Qual se havia de matar.

Logo a sorte foi cair
No capitão general.
- Sobe, sobe, marujinho,
Àquele tope real,

Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal.
- Alvíssaras, capitão,
Meu capitão-general!

Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal.

Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar.

- Todas três são minhas filhas,
Oh, quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.

- A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
- Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar.

- Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.

- Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar.
- Dar-te-ei a Nau Catrineta,
para nela navegar.

- Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar.
- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?

- Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar.
- Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar.

A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.

Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar.
E à noite a Nau Catrineta,
Estava em terra a varar.

Quando se fala de “terras de Espanha”, entende-se da Península Ibérica. Neste sentido antigo, geograficamente, mesmo que não politicamente, Portugal também era Espanha.
Como se viu, o cavaleiro foi sujeito a uma tentação grave, mas venceu-a, preferindo a morte a ceder às propostas diabólicas. Vem mesmo um anjo dar-lhe uma ajuda no momento mais grave.
A D. Silvana que vou ler foi também tema muito popular. Vamos ver:

RIMANCE DE D. SILVANA


Indo a D. Silvana
Pelo corredor acima
A tocar sua guitarra
(Oh, que tão bem a tangia!...)
Foi acordando seus pais
Que sua sesta dormiam.

— Tu que tens, D. Silvana,
Tu que tens, ó filha minha?
— Ver minhas irmãs casadas
Vestidas à maravilha...
Eu, por ser a mais fermosa,
Por que razão ficaria?

— Não tenho com quem te case,
Senão bem te casaria...
Só se for conde Alberto...
(É casado e tem família...)
— Mande-mo aqui chamar
De sua parte e da minha.
Quero falar com ele
Dentro de uma Ave-Maria.

— Aqui estou, real senhor.
Que quer vossa senhoria?
— Quero que mates viscondessa
Pra casar com filha minha.
— Viscondessa não na mato
Que a morte não lhe é merecida.
— Mata, mata, conde Alberto,
Senão eu tiro-te a vida.

Indo o conde para casa
Mais triste que o mesmo dia,
Mandou fechar as janelas
Pra não ver que era dia;
Mandou pôr a sua mesa
Para fazer que comia.
As lágrimas eram tantas,
Já pela mesa corriam.

— Tu que tens, ó conde Alberto,
Tu que tens, ó meu amor?
— Manda o Rei que te matasse,
Manda o Rei e meu senhor.
Só se fosses pra um convento
Como freira recolhida...
— Darias-me o pão por onça
E a água por medida...

Ainda a palavra não era dita,
Já o Rei batia à porta:
Que lhe mandasse a cabeça,
Que era com pena de morte.
Que lha não desse trocada,
Que ele bem na conhecia.

— Adeus, moços, adeus, moças,
Adeus, espelho onde me eu via!
Adeus, jardins de flores,
Onde eu me advertia!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero abraçar!
Anda cá, á meu menino,
Que te quero dar de mamar!

Mama, mama, meu menino,
Este leite de paixão:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, já no caixão.
Mama, mama, meu menino,
Este leite de amargura:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, na sepultura.

Toca o sino no palácio...
— Ó mamã, quem morreria?
— Morreu a D. Silvana
Pela traição que fazia:
Descasar os bem casados,
Coisa que Deus não queria.

A intervenção sobrenatural não é tão clara como na Nau Catrineta, mas a D. Silvana morre “Pela traição que fazia: / Descasar os bem casados, / Coisa que Deus não queria”. Deus impediu que se consumasse essa traição, que levaria à morte a esposa do Conde Alberto.
Este Conde Alberto da lenda, ao menos na imaginação popular, identificar-se-ia ao homónimo que aparecia no Drama de Herodes dos Bailes de Reis
Esta história de D. Silvana recolhi-a há muitos anos de fontes orais.