quarta-feira, 16 de julho de 2008

MOMENTO POÉTICO 24

Este momento poético final vai ser preenchido com um importante poema da Marquesa de Alorna; é um poema de certa extensão e que merece leitura completa; compõe-se de treze oitavas decassilábicas, que rematam sempre por um refrão, que é um paradoxo e que diz: “Que me sinto morrer, por ir vivendo”.
Ao lê-lo, parece-nos por vezes ouvir a voz da Beata Alexandrina.

PARÁFRASE DOS VERSOS DE SANTA TERESA DE JESUS

Amor, delícia de alma a Deus unida,
Do mesmo Deus suavíssimo atractivo,
Que o coração liberta e dá motivo
A saudades cruéis, enquanto há vida!
Tal dor causa o saber que só morrendo
De Deus pode gozar quem a Deus ama,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Quanto custa esta vida dilatada!...
Cuido que a rastros levo duros ferros.
São cárceres meus dias, são desterros,
Do bem, que tanto adoro, separada.
Vou com ânsias de amor desfalecendo;
E sem chegar ao fim, padeço tanto,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Ai que vida tão dura, tão amarga,
Sem tomar do meu Deus inteira posse!
Se o puro amor em que ardo é sempre doce,
Cansa, aflige a esperança, quando é larga.
Acode-me, Senhor, vai desfazendo
O pesado grilhão que inda me prende,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Co'a certeza do bem que a morte alcança
Vou sustentando a vida; mas entendo
Que o mísero mortal só vê, morrendo,
Cumpridas as promessas da Esperança.
Responde a meus clamores, vem correndo,
Morte feliz! Não tardes, não vaciles,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Vida, que és tu? Suplício desumano.
Observa o vivo amor que me devora:
Perdendo-te, a existência então melhora
E o tempo que me dás é meu tirano.
Encobrindo-me o bem que só pretendo,
Me agitas, despedaças, de tal modo,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Vida que não acaba, em Deus imersa,
Essa somente é vida verdadeira.
Enquanto não termina esta primeira,
Não se goza destoutra, tão diversa.
Porque, ó vida cruel, me estás detendo,
Se a cada instante expiro e tanto sofro,
Que me sinto morrer, por ir vivendo?

Como retribuirei tanta fineza
A Deus, que vive em mim? É pouco amá-Lo;
Devo perder a vida por gozá-Lo.
Se não cabe este bem na Natureza,
Foge, importuna Vida; vai cedendo
Às ditas imortais o teu domínio,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Meu Deus, que dura ausência, que tormento!
Que prolongada morte é minha vida!
Em dúvidas, em riscos submergida,
De terrores cercado o pensamento,
Muito mais do que morte estou sofrendo.
Tem dó de mim, Senhor! Eu mesma o tenho,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Qual peixe que sai de água, a quem se nega
Ir ao próprio elemento restaurar-se,
Que arqueja, sem poder nunca escapar-se
E somente acabando é que sossega,
Assim, meu Deus, na terra vou sofrendo:
Suspiro, chamo, arquejo, e tanto tardas,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Se me dás, generoso, algum alento,
No divino manjar que me sustenta,
Também se dobra a dor e me atormenta
O véu com que Te encobre o Sacramento.
Quero ver-Te, Senhor, e não Te vendo,
Torno a desfalecer; e tanto anelo
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Porém quando, Senhor, me reanima
A esperança de ver-Te e de gozar-Te,
Vem um susto cruel por outra parte
E que posso perder-Te então me intima.
Posso, durando mais, ir-Te perdendo?...
Que susto, que terror! Meu Deus, piedade,
Que me sinto morrer, por ir vivendo!

Desta vida arriscada me liberta,
Concede-me a existência desejada;
Solta-me, ó Deus! Da terra desligada,
Minha alma co'a ventura logo acerta.
Vê que do mundo nada já pretendo,
Que sem Ti, ó meu Deus, viver não posso,
Que me sinto morrer, por ir vivendo.

Se são os meus pecados que demoram
Esse ditoso golpe que Te peço,
Ao ver esses abismos estremeço
E meus olhos a vida e morte choram.
Doce Amor da minha alma, vem descendo!
Abre-me o Céu, liberta-me da vida,
Que me sinto morrer, por ir vivendo!

Com isto termino.
Durante quase meio ano trouxe para aqui um pouco mais do que vinte e cinco autores, no geral vozes muito representativas da poesia nacional. Os poemas foram de grande qualidade. A variedade temática também foi notável.
Verdadeiramente, quando se olha para a grandeza destes textos, as coisas mesquinhas que se dizem contra o Cristianismo ficam reduzidas à sua pequenez. Porque, como disse Camões, “o melhor de tudo é crer em Cristo”.

MOMENTO POÉTICO 23

Este penúltimo momento poético vai ser mariano, com um poema de Gil Vicente e outro do P.e José Meira Veloso.
Gil Vicente, que nasceu aí por 1470 e morreu em 1536, deixou nas suas obras de teatro muitos poemas de tema religioso. Hoje vou ler uma sua paráfrase ao hino litúrgico latino O Gloriosa Domina, isto é, “Ó Gloriosa Senhora”. Actualizei a escrita duma ou outra palavra, sobretudo a Madre para Mãe. Vamos ouvir:

Ó GLORIOSA SENHORA DO MUNDO

Ó gloriosa Senhora do mundo,
Excelsa Princesa do Céu e da Terra,
Formosa batalha de paz e de guerra,
Da Santa Trindade secreto profundo!

Santa esperança, ó Mãe de Amor,
Ama discreta do Filho de Deus,
Filha e Mãe do Senhor dos Céus,
Alva do dia com mais resplendor!

Formosa barreira, ó alvo e fito,
A quem os Profetas direito atiravam,
A Ti gloriosa os Céus esperavam,
E as Três Pessoas, um Deus infinito.

Ó cedro dos campos, estrela-do-mar,
Na serra ave Fénix, uma só amada,
Uma só sem mácula e só preservada,
Uma só nascida, sem conto e sem par!

Do que a Eva triste ao mundo tirou
Foi o teu fruto restituidor;
Dizendo-te ave! o embaixador,
O nome de Eva te significou.

Ó porta dos paços do mui alto Rei,
Câmara cheia do Espírito Santo,
Janela radiosa de resplendor tanto,
E tanto zelosa da divina Lei!

Ó mar de ciência, a tua humildade
Que foi senão porta do céu estrelado?
Ó fonte dos Anjos, ó horto cerrado,
Estrada do mundo para a Divindade.

Quando os Anjos cantam a glória de Deus,
Não são esquecidos da glória tua;
Que as glórias do Filho são da Mãe sua,
Pois reinas com Ele na corte dos Céus!

Pois que faremos os salvos por Ela,
Nascendo em miséria, tristes pecadores,
Senão tanger palmas e dar mil louvores
Ao Pai, ao Filho e Espírito e a Ela?

A gente às vezes só conhece um Gil Vicente muito popular. Aqui, como em muitos outros lugares, ele mostra que é um homem muito culto e bom poeta.
Agora um poema de redacção poveira, intitulado A Avezinha do Eremita. O seu autor, o P.e Meira Veloso, não nasceu na Póvoa, mas cá viveu muito tempo. Chegou a emigrar para o Brasil, onde ensinou línguas e filosofia; na Póvoa, foi professor no Colégio Povense, além de se dedicar ao jornalismo e à poesia. Esteve na origem do escutismo na Póvoa de Varzim, juntamente com o Dr. Abílio Garcia de Carvalho. Faleceu com 52 anos, aí por 1935.

A avezinha do eremita

(Canção popular alemã)

Houve outrora um eremita
Cuja maior alegria
Era dizer esta prece:
- Ave Maria!

Tinha consigo na cela
Uma ave que todo o dia
Cantava como o seu dono:
- Ave Maria!

Duma vez fugiu a ave
Da sua prisão sombria
E foi cantar p’ra um cipreste:
- Ave Maria!

Triste, o asceta a perseguiu;
A avezinha lhe fugia…
E por fim subiu cantando:
- Ave Maria!

Subiu, subiu nos espaços;
Mas um abutre descia…
Caçou-a e ela gritou:
- Ave Maria!

Espantado o fero abutre
As suas garras abria…
Jamais ouvira cantar:
- Ave Maria!

Salvou-se a pobre avezinha
E então com mais alegria
Fez ouvir o doce canto:
- Ave Maria!

Estava o eremita na cela
Submerso em melancolia.
Entra a avezinha, e os dois cantam:
- Ave Maria!

Virgem, não deixaste o abutre
Matar a ave que dizia
A linda oração sublime:
- Ave Maria!

Pois também do pecador
Tu serás defesa e guia
Quando ele rezar contrito:
- Ave Maria!

É um texto muito simples e muito bonito.

MOMENTO POÉTICO 22

Camões, já o disse, tem muita poesia de tema religioso. Vou ler hoje dois textos de carácter hagiológico, isto é, em que se fala de santos. O primeiro é um soneto em louvor de S. Francisco de Assis. Vamos ouvir:

Como louvarei eu, Serafim santo,
Tanta humildade, tanta penitência,
Castidade e pobreza e paciência,
Com este meu inculto e rude canto?

Argumento que às musas põe espanto,
Que faz muda a grandíloqua eloquência,
Ó imagem que a divina Providência
De Si viva em vós fez pera bem tanto!

Fostes de santos uma rara mina;
Almas de mil a mil ao Céu mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.

E não roubáveis só com a doutrina
As vontades mortais, mas a divina,
Pois os seus rubis, cinco lhe roubastes.

A imagem dos cinco rubis refere-se aos estigmas, às marcas das cinco chagas de Cristo, com o seu sangue, que S. Francisco teve impressos.
O segundo texto é um fragmento dum poema sobre Santa Úrsula. Esta santa é alemã, de Colónia. Verdadeiramente, quase tudo na sua vida está envolto em lenda. Mas isso não é tão importante como possa parecer: se houve tantos mártires anónimos, ela, e outros e outras como ela, representa-os.
Esta mártir mereceu grande veneração no mundo anglo-saxónico. Camões escreveu sobre ela uma biografia poética, em estrofes de oitava-rima, como as d’Os Lusíadas. As estrofes que vou ler mostram-no-la momentos antes de avançar para o martírio.
Camões é o poeta do amor, por excelência. Embora aqui tenhamos o amor divino, a sua voz está tão afinada como é costume, se não melhor.
Repare-se que os dois últimos versos das estrofes são um refrão (repetem-se) e dão a ideia geral do conjunto:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Há aqui um jogo de conceitos: “o que desejo” e “o que não vejo” são naturalmente o rosto de Cristo glorioso.

Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida:
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que de amor cheio e de brandura,
De amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e formosura,
Não pode nunca haver coisa formosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Uma vida tão fraca e duvidosa:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que por amor Te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do Céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que de amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor Te satisfazes:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que com amor me cativaste;
(Se livre pode ser quem não cativas)
Amor, que em tais prisões m'asseguraste
As esperanças dantes fugitivas:
Amor, que suspirando m'ensinaste
A derramar por Ti lágrimas vivas:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja. Amor, o que não vejo?

É um texto muito poético, muito bonito, mas também muito conceituoso, ao modo por exemplo de Amor é fogo que arde sem se ver ou de certos poemas de S. Teresa de Ávila.

MOMENTO POÉTICO 21

Hoje vou ler três pequenos poemas de um sacerdote que foi pároco no nosso arciprestado, o P.e António Martins de Faria. Ele nasceu em Barcelos, a 12/9/1837, e faleceu na Póvoa de Varzim, em casa dum seu irmão, em 16/10/1913, com 76 anos.
Além de pároco, foi jornalista, orador e poeta.
Como pároco, esteve à frente de uma freguesia barcelense, antes de vir para Balasar. Dali foi para Beiriz, onde se manteve quase trinta anos.
Fundou um jornal em Barcelos, pelo que deve ter dado colaboração à imprensa ainda no período em que se encontrava em Balasar. Colaborou nos jornais poveiros Estrela Povoense e n’A Propaganda. Afora os escritos saídos em variada imprensa periódica, publicou um opúsculo sobre Santa Eulália de Mérida, em 1894, e dois pequenos livros de poemas, Vozes de Alma (1910) e Últimas Vozes (1913). Nas Vozes de Alma, republica o poema sobre Santa Eulália.
O poema que vou ler, em quatro quadras, intitula-se Amor de Deus:

Amor de Deus

Ou me sente, à noite, à mesa,
Os meus livros folheando;
Ou ande o meu giro dando
De manhã pela devesa –

Ou suba, com sol, ao monte,
Para ver rolar o mar;
Ou desça ao val’, com luar,
Para ouvir gemer a fonte –

Ou a colher violetas
Me quede no meu jardim;
Ou, feito criança, enfim,
Corra atrás das borboletas –

Em toda a parte, Senhor,
Como diz um grande santo,
Me sinto com doce encanto
Cercado do teu amor.

O P.e António de Faria pelos vistos era um bom conversador e, como aqui diz, levava a vida sem grandes dramas, de um modo simples.
O próximo poema intitula-se Existência de Deus. O autor afirma a existência de Deus apoiando-se no espectáculo da criação, pois, como escreve, não pode haver “obras sem obreiro”. O mundo não se criou a si mesmo nem muito menos estabeleceu as regras que o governam.

Existência de Deus

Ao ver o céu, a terra, o mar, o monte,
Num Ser Omnipotente,
Que foi e fora sempre antes de tudo,
Que forma deste mundo o conteúdo,
Eu creio firmemente.

Com Ele pode o homem, quando queira,
De tudo dar razão,
Desde o ente mais vil, em seu conceito,
Até ao ser mais nobre e mais perfeito
De toda a criação.

Com Ele, o ser do sol, o ser da lua,
Da luz e mais do ar;
Com Ele, os vendavais, as maresias,
Os frios, os calores, noites e dias,
Bem pode perscrutar.

Unido ao corpo seu estreitamente,
Um outro ser também
Com Ele, pode o homem descobrir,
Capaz de bem amar e bem servir
Na terra o Sumo Bem.

Ao contrário, porém, sem Ele, o Mestre
De todo o magistério,
O mundo para mim, p’ra minha mente,
Foi, é e será eternamente
Insondável mistério.

Para se crer, sem Ele, em tantos seres,
Fora mister primeiro
Ao estulto ateísta demonstrar
Que é dever da razão acreditar
Em obras sem obreiro.

Mas é impossível; e portanto
Num Ser Omnipotente,
Que foi e fora sempre antes de tudo,
Que forma deste mundo o conteúdo,
Eu creio firmemente.

A estrofe final do poema repete quase toda a primeira, reiterando assim a afirmação da fé do poeta.
O último poema é mariano. O autor parte da invocação da Ladainha de Nossa Senhora em que Ela é declarada Mãe Puríssima (Mater Purissima, em latim).

Mater Purissima
(Mãe Puríssima)

Ladainha

Se à Virgem, Mãe da Pureza,
Querem dar provas de amor,
Dê-lhe o céu o seu fulgor
E a terra sua beleza.

Dê-lhe o sol seus arrebóis
E as suas per’las o mar;
Dê-lhe a lua o seu luar
E o seu canto os rouxinóis.

Dê-lhe a fonte os seus cristais
E as suas flor’s o vergel;
Dê-lhe a colmeia seu mel
E seu perfume os rosais.

Dê-lhe o poeta canções;
Dê-lhe quadros o pintor;
E vós, almas do Senhor,
Dai-lhe os vossos… Corações.

Toda a criação deve oferecer o seu melhor à Mãe Puríssima.

MOMENTO POÉTICO 20

Jerónimo Baía foi monge do Mosteiro de Tibães, próximo de Braga. Tibães não é um local de visita popular nem é propriamente um monumento muito vistoso, mas historicamente foi muito importante.
Jerónimo Baía professou lá, no séc. XVII, mas não viveu sempre naquele mosteiro beneditino. Está sepultado em S. Romão de Neiva.
Jerónimo Baía não é um escritor simpático, nem pelo barroco dos seus poemas nem por ter tratado temas pouco próprios de um monge. O poema que vou ler intitula-se Falando com Deus. Está cheio de antíteses, que de facto são paradoxais, joga muito no paralelismo, e conclui com um jogo der palavras, o chamado quiasmo. Mas vamos vê-lo:

Falando com Deus

Só Vos conhece, Amor, quem se conhece;
Só Vos entende bem quem bem se entende;
Só quem se ofende a si, não Vos ofende,
E só Vos pode amar quem se aborrece.

Só quem se mortifica em Vós floresce;
Só é senhor de si quem se Vos rende;
Só sabe pretender quem Vos pretende,
E só sobe por Vós quem por Vós desce.

Quem tudo por Vós perde, tudo ganha,
Pois tudo quanto há, tudo em Vós cabe.
Ditoso quem no vosso amor se inflama,

Pois faz troca tão alta e tão estranha.
Mas só Vos pode amar o que Vos sabe,
Só Vos pode saber o que vos ama.

E agora, um longo poema de Alexandre Herculano, intitulado Deus. Herculano gosta do grandioso e é o que aqui temos.

DEUS

Nas horas do silêncio, à meia-noite,
Eu louvarei o Eterno!
Ouçam-me a Terra e os mares rugidores,
E os abismos do Inferno.
Pela amplidão dos Céus meus cantos soem,
E a Lua resplendente
Pare em seu giro, ao ressoar nest'harpa
O hino do Omnipotente.

Antes de tempo haver, quando o infinito
Media a eternidade,
E só do vácuo as solidões enchia
De Deus a imensidade,
Ele existia, em sua essência envolto,
E fora dele o nada:
No seio do Criador a vida do homem
Estava ainda guardada:
Ainda então do mundo os fundamentos
Na mente se escondiam
De Jeová, e os astros fulgurantes
Nos céus não se volviam.

Eis o Tempo, o Universo, o Movimento
Das mãos solta o Senhor:
Surge o Sol, banha a Terra, e desabrocha
Nesta a primeira flor:
Sobre o invisível eixo range o globo:
O vento o bosque ondeia:
Retumba ao longe o mar: da vida a força
A natureza anseia!

Quem, dignamente, ó Deus, há-de louvar-Te,
Ou cantar Teu poder?
Quem dirá de Teu braço as maravilhas,
Fonte de todo o ser,
No dia da Criação; quando os tesouros
Da neve amontoaste;
Quando da Terra nos mais fundos vales
As águas encerraste?!

E eu onde estava, quando o Eterno os mundos,
Com dextra poderosa,
Fez, por lei imutável, se librassem
Na mole ponderosa?
Onde existia então? No tipo imenso
Das gerações futuras;
Na mente do meu Deus. Louvor a Ele
Na Terra e nas alturas!
Oh, quanto é grande o rei das tempestades,
Do raio, e do trovão!
Quão grande o Deus, que manda, em seco estio,
Da tarde a viração!
Por Sua providência nunca, embalde,
Zumbiu mínimo insecto;
Nem volveu o elefante, em campo estéril,
Os olhos inquieto.
Não deu Ele à avezinha o grão da espiga,
Que ao ceifador esquece;
Do norte ao urso o sol da Primavera,
Que o reanima e aquece?
Não deu Ele à gazela amplos desertos,
Ao certo a amena selva,
Ao flamingo os pauis, ao tigre o antro,
No prado ao touro a relva?
Não mandou Ele ao mundo, em luto e trevas,
Consolação e luz?
Acaso em vão algum desventurado
Curvou-se aos pés da Cruz?
A quem não ouve Deus? Somente ao ímpio
No dia da aflição,
Quando pesa sobre ele, por seus crimes,
Do crime a punição.

Homem, ente imortal, que és tu perante
A face do Senhor?
És a junca do brejo, harpa quebrada
Nas mãos do trovador!
Olha o velho pinheiro, campeando
Entre as neves alpinas:
Quem irá derribar o rei dos bosques
Do trono das colinas?
Ninguém! Mas ai do abeto, se o seu dia
Extremo Deus mandou!
Lá correu o aquilão: fundas raízes
Aos ares lhe assoprou.
Soberbo, sem temor, saiu na margem
Do caudaloso Nilo,
O corpo monstruoso ao sol voltando,
Medonho crocodilo.
De seus dentes em roda o susto habita;
Vê-se a morte assentada
Dentro em sua garganta, se descerra
A boca afogueada:
Qual duro arnês de intrépido guerreiro
É seu dorso escamoso;
Como os últimos ais de um moribundo
Seu grito lamentoso:
Fumo e fogo respira quando irado;
Porém, se Deus mandou,
Qual do norte impelida a nuvem passa,
Assim ele passou!

Teu nome ousei cantar! Perdoa, ó Nume;
Perdoa ao teu cantor!
Dignos de ti não são meus frouxos hinos,
Mas são hinos de amor.
Embora vis hipócritas te pintem
Qual bárbaro tirano:
Mentem, por dominar com férreo ceptro
O vulgo cego e insano.
Quem os crê é um ímpio! Recear-te
É maldizer-te, ó Deus;
É o trono dos déspotas da Terra
Ir colocar nos Céus.
Eu, por mim, passarei entre os abrolhos
Dos males da existência
Tranquilo, e sem temor, à sombra posto
Da Tua Providência.

Alexandre Herculano era um homem muito culto e o poema ressente-se disso. Fala-se de Jeová (a forma correcta é Javé, sabemo-lo melhor hoje), da liberdade, usam-se palavras menos comuns. Mas o texto não deixa de ter o seu encanto, mesmo como documento dum momento de desorientação religiosa.

terça-feira, 17 de junho de 2008

MOMENTO POÉTICO 19

Na nossa história há pelo menos dois homens notáveis com o nome de João de Deus: S. João de Deus, que é sem dúvida um dos nomes mais extraordinários do nosso passado, embora quase ninguém dele fale, e o poeta João de Deus.
Falemos agora deste último. Ele tem um lugar muito especial na nossa cultura. Quando se discutiam as ideias mais loucas sobre como ensinar as crianças a ler a contar, ele apresentou um livro inovador e de grande sucesso, ajustado ao objectivo em vista, a Cartilha Maternal. O livro da primeira classe por onde aprendi a ler não era a Cartilha Maternal, mas inspirava-se nela. Os contemporâneos de João de Deus tiveram-no em conta de grande poeta.
Vamos ver dele dois poemas. O primeiro intitula-se Deus?

DEUS?

Quem me terá trazido a mim suspenso,
Atónito, alheado… ou a quem devo,
Enfim, dizer que em nada mais me enlevo,
A ninguém mais do coração pertenço?...

Se desço ao vale, ao alcantil me elevo,
Quem é que eu busco, em que será que eu penso?
És tu memória de horizonte imenso
Que me encheu alma dum eterno enlevo?...

Segues-me sempre… e só por ti suspiro!
Vejo-te em tudo… Terra e Céu te esconde!
Nunca te vi… cada vez mais te admiro!

Nunca essa voz à minha voz responde…
E eco fiel até do ar que respiro,
Sinto-te o hálito!... Em minha alma ou onde?


O segundo é uma paráfrase do Pai-nosso. Já tínhamos encontrado outras paráfrases, mas nenhuma desta importante oração evangélica.

PAI-NOSSO

Pai nosso, de todos nós,
Que todos somos irmãos:
A ti erguemos as mãos
E levantamos a voz.

A ti que estás no Céu
E nos lanças com clemência,
Do vasto, estrelado véu
Os olhos da Providência,

Bendito, santificado
Seja o teu nome, Senhor!
Inviolável, sagrado
Na boca do pecador!

E venha a nós o teu Reino!
Acabe a vil cobiça!
Reine o amor, a justiça
Que pregava o Nazareno,

De modo que seja feita
A tua santa vontade,
Sempre a expressão perfeita
Da justiça e da verdade!

Seja feita assim na Terra
Como no Céu, onde habita
Esse cuja mão encerra
A criação infinita!

O pão-nosso nesta lida
De cada dia nos dá…
Hoje, e basta; a luz da vida
Quem sabe o que durará?

E perdoa-nos, Senhor,
As nossas dívidas; sim!
Grandes são, mas é maior
Essa bondade sem fim!

Assim como nós (se é dado
Julgar-nos também credores),
Perdoamos de bom grado
Cá aos nossos devedores.

E não nos deixeis, bom Pai,
Cair nunca em tentação;
Que o homem, por condição,
Sem o teu auxílio cai!

Mas tu que não tens segundo,
Mas tu que não tens igual,
Dá-nos a mão neste mundo,
Senhor, livra-nos do mal!

Eu agora estou a caminhar para o fim do momento poético. Ainda o manterei durante Julho, mas depois acaba. E fica-me pena por não trazer para aqui nenhuma poesia litúrgica recente, porque há-a de muita qualidade. Por isso vou ler umas quadras de Natal que são mais populares que litúrgicas, neste momento em que estamos no solstício do Verão e em que celebramos o nascimento de S. João Baptista. Daqui a seis meses, no solstício do Inverno, celebraremos o Natal do Salvador.

Alegrem-se os céus e a terra

Alegrem-se os céus e a terra,
Cantemos com alegria:
Já nasceu o Deus-Menino,
Filho da Virgem Maria!

Entrai, entrai, pastorinhos,
Por esse portal sagrado,
Vinde adorar o Menino
Numas palhinhas deitado!

Em Belém à meia-noite,
Meia-noite de Natal,
Nasceu Jesus no presépio,
Maravilha sem igual.

Ai, que menino tão belo,
Ai, que graça que tem,
Ai, que tanto se parece
Com a Virgem, sua Mãe!

MOMENTO POÉTICO 18

Hoje temos dois rimances, isto é, duas histórias em verso, muito antigas, cavaleirescas, mais ou menos cortesãs. Podem vir do séc. XV. O primeiro é a outrora célebre Nau Catrineta, o segundo o Rimance de Dona Silvana.
Este género de poemas foi durante muito tempo de tradição oral, talvez ao modo do que se passou com as danças e cantares folclóricos, que também terão começado por ter origem cortesã ou fidalga. Em Portugal, quem primeiro cuidou da sua recolha foi o Cavaleiro de Oliveira, no séc. XVIII; no século seguinte Garrett continuou a tarefa, como a continuou mais tarde Teófilo Braga e outros. A ideia inicial da recolha foi romântica, como o aconteceu na Alemanha com os irmãos Grimm.
Os dois são poemas moralizantes e em ambos encontramos o que alguns chamam o maravilhoso cristão, isto é, a intervenção sobrenatural, e daí se enquadrarem na temática religiosa. No primeiro essa intervenção é clara, no segundo quase só sugerida. É interessante notar que a Nau Catrineta envia para a época das Descobertas marítimas.


NAU CATRINETA

Lá vem a Nau Catrineta,
Que tem muito que contar!
Ouvide, agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia,
Que iam na volta do mar.
Deitaram sola de molho,
Para o outro dia jantar.

Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.
Deitaram sortes ao fundo,
Qual se havia de matar.

Logo a sorte foi cair
No capitão general.
- Sobe, sobe, marujinho,
Àquele tope real,

Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal.
- Alvíssaras, capitão,
Meu capitão-general!

Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal.
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal.

Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas,
está no meio a chorar.

- Todas três são minhas filhas,
Oh, quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar.

- A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar.
- Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar.

- Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar.
- Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual.

- Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar.
- Dar-te-ei a Nau Catrineta,
para nela navegar.

- Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar.
- Que queres tu, meu gajeiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?

- Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar.
- Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar.

A minha alma é só de Deus,
O corpo dou-o eu ao mar.
Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.

Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar.
E à noite a Nau Catrineta,
Estava em terra a varar.

Quando se fala de “terras de Espanha”, entende-se da Península Ibérica. Neste sentido antigo, geograficamente, mesmo que não politicamente, Portugal também era Espanha.
Como se viu, o cavaleiro foi sujeito a uma tentação grave, mas venceu-a, preferindo a morte a ceder às propostas diabólicas. Vem mesmo um anjo dar-lhe uma ajuda no momento mais grave.
A D. Silvana que vou ler foi também tema muito popular. Vamos ver:

RIMANCE DE D. SILVANA


Indo a D. Silvana
Pelo corredor acima
A tocar sua guitarra
(Oh, que tão bem a tangia!...)
Foi acordando seus pais
Que sua sesta dormiam.

— Tu que tens, D. Silvana,
Tu que tens, ó filha minha?
— Ver minhas irmãs casadas
Vestidas à maravilha...
Eu, por ser a mais fermosa,
Por que razão ficaria?

— Não tenho com quem te case,
Senão bem te casaria...
Só se for conde Alberto...
(É casado e tem família...)
— Mande-mo aqui chamar
De sua parte e da minha.
Quero falar com ele
Dentro de uma Ave-Maria.

— Aqui estou, real senhor.
Que quer vossa senhoria?
— Quero que mates viscondessa
Pra casar com filha minha.
— Viscondessa não na mato
Que a morte não lhe é merecida.
— Mata, mata, conde Alberto,
Senão eu tiro-te a vida.

Indo o conde para casa
Mais triste que o mesmo dia,
Mandou fechar as janelas
Pra não ver que era dia;
Mandou pôr a sua mesa
Para fazer que comia.
As lágrimas eram tantas,
Já pela mesa corriam.

— Tu que tens, ó conde Alberto,
Tu que tens, ó meu amor?
— Manda o Rei que te matasse,
Manda o Rei e meu senhor.
Só se fosses pra um convento
Como freira recolhida...
— Darias-me o pão por onça
E a água por medida...

Ainda a palavra não era dita,
Já o Rei batia à porta:
Que lhe mandasse a cabeça,
Que era com pena de morte.
Que lha não desse trocada,
Que ele bem na conhecia.

— Adeus, moços, adeus, moças,
Adeus, espelho onde me eu via!
Adeus, jardins de flores,
Onde eu me advertia!
Anda cá, ó meu menino,
Que te quero abraçar!
Anda cá, á meu menino,
Que te quero dar de mamar!

Mama, mama, meu menino,
Este leite de paixão:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, já no caixão.
Mama, mama, meu menino,
Este leite de amargura:
Hoje, contigo nos braços,
Amanhã, na sepultura.

Toca o sino no palácio...
— Ó mamã, quem morreria?
— Morreu a D. Silvana
Pela traição que fazia:
Descasar os bem casados,
Coisa que Deus não queria.

A intervenção sobrenatural não é tão clara como na Nau Catrineta, mas a D. Silvana morre “Pela traição que fazia: / Descasar os bem casados, / Coisa que Deus não queria”. Deus impediu que se consumasse essa traição, que levaria à morte a esposa do Conde Alberto.
Este Conde Alberto da lenda, ao menos na imaginação popular, identificar-se-ia ao homónimo que aparecia no Drama de Herodes dos Bailes de Reis
Esta história de D. Silvana recolhi-a há muitos anos de fontes orais.

domingo, 1 de junho de 2008

MOMENTO POÉTICO 17

Já falei aqui no grande sacerdote que foi o P.e Abel Varzim. A Póvoa conhece um outro grande sacerdote da sua geração, o Mons. Lopes da Cruz, fundador da Rádio Renascença e natural de Terroso. Mas hoje vou começar por ler um poema dum sacerdote do mesmo tempo, o padre jornalista e poeta Moreira das Neves. É um poema que vai beber ao Cântico do Irmão Sol, de S. Francisco de Assis, que também lerei.


O NOSSO CÂNTICO DO SOL

Altíssimo, potente e bom Senhor!
A Ti pertence toda a graça imensa,
A Ti pertencem bênçãos e louvor.

Louvado sejas por quem ama e pensa!
Por todas as humildes criaturas
Que esplendem luz ou choram treva densa!

Pelo irmão Sol, candeia das alturas,
Que afasta a noite, abrindo a aurora em rosa,
E faz crescer as açucenas puras.

Pela irmã Lua, a cismadora esposa
Do Cântico dos Cânticos dos Céus,
Vestida de alva prata a mais formosa.

Pelas estrelas, vivos lumaréus,
Que nossos olhos fitam, evocando
O Teu poder, o Teu amor, ó Deus.

Louvado sejas pelo vento brando,
Pela nuvem, pelo tempo e pelo ar
Com que nos sustentamos, respirando.

Pela água dos vergéis, sempre a cantar
Uma canção baixinho que, resume
Os bramidos das ondas do alto-mar.

Louvado sejas Tu, Senhor, p'lo lume,
Símbolo das virtudes verdadeiras
Que ardem, nas almas, e lhes dão perfume.

P'la terra, mãe fecunda entre as primeiras,
Que produz as violetas dos caminhos
E a, lenha preciosa das lareiras.

Pelas ervas, romãs, e flor dos linhos!
P'lo coração dos que, por Teu amor,
Andam de rastos, a calcar espinhos.

Louvado sejas ainda e mais, Senhor,
Por nossas vozes breves e serenas,
Mas cheias de ternura e de candor.

Somos as tuas brancas açucenas.
De Ti nos vem a força p'ra lutar,
Com audácia de heróis, sobre as arenas...

Tombam rosas do céu... Alvor de luar.
Poisam pombas nas torres das igrejas.
Erguem-se as nossas almas para rezar.

Hoje e sempre, Senhor, louvado sejas!

Moreira das Neves

“No princípio criou Deus o Céu e a Terra”: este cantico do Sol é um canto da criação. Nas criaturas ficaram marcas do Criador, daí que seja natural que os homens subam até Deus a partir das suas obras, que são de maravilha quer aos níveis químico, botânico, zoológico, humano, astronómico.
O P.e Moreira das Neves uma vez escreveu um poema sobre tema poveiro. Vamos vê-lo:

Lembrança da Jornada Eucarística realizada na Póvoa de Varzim, a 29 de Setembro de 1931 – Dia de S. Miguel

Bendita a vossa jornada
Cheia de ardor triunfal
E de alegria encantada,
Cruzados de Portugal!

Vós sóis custódias de amor
De um esplendor nunca visto,
Cavaleiros do Senhor,
Soldados de Jesus Cristo!

Revoada de mariposas,
Batalhão de criancinhas:
Tendes o encanto das rosas
E a graça das andorinhas.

Se a gente vos vê passar,
Sente que passa Jesus.
No fundo do vosso olhar,
Há infinitos de luz.

Rumor de almas em tropel?
— Deixá-lo! A hora é de esp'ranças!
A Espada de S. Miguel
Vos acompanha, crianças!

Avante! Passai! Rompei,
Em demanda do Graal!
Por Jesus e pela Grei,
Cruzados de Portugal!

Padre Moreira das Neves


S. Francisco de Assis era italiano, todos sabemos. Mas apesar disso, vamos ouvir este seu poema. Aliás, ainda havemos de ouvir aqui alguns poemas, um de Camões, sobre este santo.


CÂNTICO DO IRMÃO SOL

Altíssimo, omnipotente, bom Senhor,
A Ti pertencem os louvores, a glória, a honra e toda a bênção!
A Ti só, Altíssimo, se hão-de prestar
E nenhum homem é digno de pronunciar o Teu Nome.

Louvado sejas, ó meu Senhor, com todas as Tuas criaturas,
Especialmente meu senhor, o irmão sol
Que faz o dia e nos dá a luz.
E ele é belo e radiante com grande esplendor;
De Tí, ó Altíssimo, nos traz imagem.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã lua e as estrelas;
No céu as formastes, claras e preciosas e belas.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão vento
E pelo ar e a nuvem e o sereno e todo o tempo
Pelo qual sustentas a s tuas criaturas.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pela irmã água
A qual é muito útil e humilde e preciosa e casta.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelo irmão fogo
Pelo qual alumias a noite
E ele é belo e alegre e robusto e forte.

Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a mãe terra
Que nos alimenta e governa
E produz variados frutos e flores coloridas e erva.

Louvado sejas, ó meu Senhor, pelos que perdoam, por amor de ti,
E suportam enfermidade e tribulação.
Bem-aventurados aqueles que as sofrem em paz,
Pois que por Ti, ó Altíssimo, serão coroados.

Louvado sejas, ó meu Senhor, por nossa irmã a morte corporal
Da qual nenhum homem vivente pode escapar;
Ai daqueles que morrem em pecado mortal!
Bem-aventurados aqueles que se tiverem conformado com a Tua santíssima Vontade,
Porque a morte segunda lhes não fará mal.

Louvai e bendizei ao meu Senhor e dai-Lhe graças
E servi-O com grande humildade!

Como também é sabido, há quem aproxime este poema do Hino aos Sacrários da Beata Alexandrina. Hino que foi recentemente traduzido para latim.

Momento poético 16

Hoje vou começar por um poemeto de um tal A.T. de Castilho, poeta que desconheço, intitulado A, B, C… O texto é construído a partir da sucessão das letras do alfabeto. Mesmo que se possa achá-lo de valor poético menor, ele mostra como se podem usar muitos pontos de partida para louvar a Mãe de Deus.

A, B, C…

A – Ave Maria,
B – Bondosa e bela,
C – Cofre de graças,
D – Divina estrela!

E – Esperança nossa,
F – Fonte de Amor,
G – Génio de bem,
H – Honesta flor.

I – Íman divino,
J – Jóia mimosa,
K – Koran sagrado,
L – Luz bem formosa.

M – Mãe dos mortais,
N – Nuvem dos brilhos,
O – Orai por nós,
P – Por nossos filhos.

Q – Querida Virgem,
R – Remédio ao mal:
S – Socorre sempre
T – Todo o mortal.

U – Único abrigo,
V – Vital, fecundo,
X – X do mistério,
Z – Zelai o mundo.

Lembra os acrósticos, poemas cujos versos se iniciam pelas letras do nome das pessoas.
Agora um soneto de Diogo Bernardes, um contemporâneo de Camões:

A NOSSA SENHORA

Ó Virgem bela e branda, quem já vira
Este coração meu tão inflamado
Em vosso doce amor, que outro cuidado,
Outro querer em si não consentira!

Oh, quem asas me dera que subira,
Das afeições humanas desatado,
A tão seguro e venturoso estado,
Onde em vão não se chora nem suspira!

Em tanto como pode desejar-Vos
Sem culpa, quem reparte o seu desejo,
Todo devido a Vós sem faltar nada?

Tal Vos vejo, Senhora, e tal me vejo,
Que sei de mim que não mereço amar-Vos,
Merecendo Vós só de ser amada.

É uma meditação comovida sobre as excelências da Virgem Maria por um poeta que se sente indigno de tratar tão alto tema.
E para concluir um soneto de Camões, intitulado À Conceição de Virgem Nossa Senhora. Conceituoso como o de Bernardes.
No poema aparece a expressão “sacra Fénix”. De si Fénix indica uma ave lendária que renascia das próprias cinzas. Em tempos foi hábito aplicá-la a Jesus Cristo vencedor da morte. Neste caso, talvez queira dizer que Nossa Senhora nasceu imune de pecado, como os primeiros pais da humanidade.

À Conceição de Virgem Nossa Senhora

Pera se namorar do que criou,
Te fez Deus, sacra Fénix, Virgem pura.
Vede que tal seria esta feitura
Que para Si o Seu Feitor guardou!

No seu alto conceito Te formou
Primeiro que a primeira criatura,
Pera que única fosse a compostura
Que de tão longo tempo se estudou.

Não sei se digo em tudo quanto baste
Pera exprimir as raras qualidades
Que quis criar em Ti quem Tu criaste.

És Filha, Mãe e Esposa: e se alcançaste,
Ua só, três tão altas dignidades,
Foi porque a Três de Um só tanto agradaste.

Dadas as subtilezas maneiristas presente no soneto, ele não é fácil. Vou por isso dar alguma explicação sobre os dois tercetos.
Em “Que quis criar em Ti quem Tu criaste”, “quem Tu criaste” é o Filho, que foi quem criou a Mãe...
No terceto final, Maria é Filha de Deus Pai, Mãe de Deus Filho e Esposa de Deus Espírito Santo, e estas são as suas “três tão altas dignidades”. No último verso “Três” refere-se às pessoas da Santíssima Trindade e “de Um só” diz-se de um só Deus.

Momento poético 15

Conforme prometido, o momento poético de hoje volta a ser mariano, isto é, sobre Nossa Senhora. O poema com que vou começar intitula-se mesmo Ave-Maria. Mas não é uma paráfrase como o da vez passada. O seu título tem antes a ver com o toque das Ave-Marias ou das Trindades, com que noutros tempos os campanários das igrejas anunciavam três momentos diários de oração, pela manhã, ao meio-dia e ao entardecer. A esta oração também se chama o Angelus ou, em tempo pascal, o Regina Coeli. Estas expressões latinas indicam a primeira ou as duas primeiras palavras das orações em latim que então se rezavam.
O poema é constituído por seis estrofes de cinco versos mais uma espécie de refrão.
O autor dele, que viveu certamente em finais do séc. XIX ou princípios do de XX, chamava-se Francisco Palha. Não conheço mais nada dele.
O poema tem algo de neo-garretiano, isto é, perpassa-o um tom tradicionalista e popular. Mas não deixa de ser um poema com o seu mérito.

AVE MARIA!

No sino da freguesia,
Três badaladas ouvi.
Sobre a terra húmida e fria,
De joelhos, mesmo aqui,
Oremos, que é findo o dia:
Ave Maria!

Descendo da serrania,
Já o pastor ao curral
Os fartos rebanhos guia:
De abundância, ao de hoje igual,
Dá-lhe amanhã outro dia,
Virgem Maria!

A mãe que o filho cria
Já no berço o vai deitar;
Um sono tranquilo envia
Sobre o seu tecto pousar
Até ao romper do dia,
Virgem Maria!

Não deixeis a ventania
As negras asas abrir.
Do perigo o nauta desvia,
Dá-lhe uma estrela a luzir
Como luz o sol do dia,
Virgem Maria!

Ao triste manda alegria,
Ao que tem fome dá pão,
A quem teu nome injuria
Dá sincera contrição,
Antes do extremo dia,
Virgem Maria!

Ao moribundo abrevia
As horas do padecer.
Livra-o de grande agonia;
Leva-o, depois de morrer,
Ao mundo do eterno dia,
Virgem Maria.
Francisco Palha

Como se vê, ele é uma sequência de pedidos, numa oração que cristãmente se preocupa senão com todos pelo menos com muita gente.
Volto agora a Bocage, ao soneto Invocando o amparo de Maria Santíssima. Depois de exaltar a Mãe de Deus no seu habitual tom grandiloquente, o poeta dirige-lhe uma prece muito humilde:

Tu, por Deus entre todas escolhida,
Virgem das virgens; Tu, que do assanhado
Tartáreo monstro com Teu pé sagrado
Esmagaste a cabeça entumecida;

Doce abrigo, santíssima guarida
De quem Te busca em lágrimas banhado,
Corrente com que as nódoas do pecado
Lava uma alma que geme arrependida;

Virgem, de estrelas nítidas c’roada,
Do Espírito, do Pai, do Filho Eterno,
Mãe, Filha, Esposa e, mais que tudo, amada:

Valha-me o teu poder e amor materno;
Guia este cego, arranca-me da estrada
Que vai parar ao tenebroso inferno!

É mais um poema bocagiano de arrependimento: “Guia este cego, arranca-me da estrada / Que vai parar ao tenebroso inferno!”, pede o poeta.
Convém notar que Bocage tem conhecimento muito aprofundado da teologia mariana: exalta Nossa Senhora não de um modo gratuito, mas com grande fundamento nos privilégios daquela que foi declarada Rainha do Céu e da Terra.
Quando ele Lhe chama “Virgem, de estrelas nítidas c’roada, / Do Espírito, do Pai, do Filho Eterno, / Mãe, Filha, Esposa e, mais que tudo, amada”, isto merece alguma explicação. Nossa Senhora é Mãe do Filho Eterno de Deus feito homem, Jesus Cristo; é Filha do Pai Eterno; e é Esposa do Espírito Santo, que misteriosamente a fecundou, para que dela nascesse Jesus.
Comparativamente, o poema de Francisco Palha era menos pretensioso.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Momento poético 14

O mês de Maio é dedicado a Nossa Senhora. Como não tive ocasião de começar a apresentar, desde o seu princípio, poesia sobre a Mãe de Deus aqui no momento poético, vou ao menos fazê-lo agora. Aliás, Maria é um tema maior da nossa poesia de tema religioso. Já se viu no Magnificat que todas as gerações hão-de proclamá-La bem-aventurada.
Começo com uma variação sobre a Ave-Maria, uma paráfrase cujo autor ignoro. Eu copiei-a já há tempos, mas não tive o cuidado de fixar o nome do autor. Ele dedica três quadras à Ave-Maria e duas à Santa Maria. São versos muito bem feitos.

Ave Maria

“Ave, celeste Rainha!”,
outrora um anjo dizia,
e os homens há vinte séculos
repetem «Ave Maria!»

Graças do Céu Vos inundam,
O Senhor convosco habita;
Entre todas as mulheres,
Vós sois a mulher bendita.

Como Vós não há, Senhora,
Quem tantas graças concentre;
Jesus, o Filho do Eterno,
É fruto do vosso ventre.

Santa Maria, piedosa
Mãe de Deus e Mãe das Dores,
Sois o amparo dos caídos,
Rogai por nós, pecadores.

Agora no mar da vida
Sede Vós seguro norte;
Fazei-nos entrar o porto
Na hora da nossa morte.


O próximo texto é dum sacerdote contemporâneo do P.e António Vieira, também pregador notável, mas bastante mais novo que ele, o P.e Manuel Bernardes: 1644-1710. É um texto poético, mas não em verso. É um hino ou cântico de louvor, construído sob inspiração bíblica, quer quanto à estrutura anafórica e paralelística, quer quanto ao conteúdo principal. Vejamo-lo:


Cântico dos Louvores da Mãe Admirável, Maria Santíssima, Senhora Nossa

Louvai, obras do Senhor, a Senhora porque Ela é a mais nobre, a mais excelente e perfeita obra do Senhor!
Louvai, Sol e Lua, a Senhora porque a Senhora é esco­lhida como Sol e formosa como a Lua!
Louvai, estrelas do firmamento, a Senhora porque Ela é a radiante estrela que guia os navegantes do mar deste século!
Louvai, nuvens do Senhor, a Senhora porque Ela é a nuvem leve em que desceu a nós o Verbo de Deus humanado!
Louvai, orvalhos da manhã, a Senhora porque Ela é o velo de Gedeão que embebeu o celeste orvalho do Divino Verbo!
Louvai, neves e geadas, a Senhora porque o candor de sua pureza é o refrigério dos incentivos de nossa carne!
Louvai, raios e relâmpagos, a Senhora porque Ela é o res­plendor claríssimo e eficacíssimo da luz da Divina Graça!
Louvai, todas as fontes e mares do Senhor, a Senhora porque a Senhora é fonte fechada com o selo de Deus, é o poço de águas vivas e o mar de todas as graças juntas!
Louvai, plantas e flores do campo, a Senhora porque Ela é a rosa de Jericó, o lírio entre espinhos, a palma de Cadés, o cedro do Líbano, a árvore da Vida, que nos produziu o fruto felicíssimo da vida eterna!
Louvai, montes do Senhor, a Senhora porque a Senhora é o monte santo de Sião, onde se fundou o templo vivo da Humanidade de Cristo!
Louvai, meninos inocentes, a Senhora porque de seu intacto ventre se dignou Deus nascer Menino para nos res­tituir à primeira inocência!
Louvai, sacerdotes do Senhor, a Senhora, pois ela foi a grande Sacerdotisa que em suas mãos tomou e ofereceu a Hóstia viva em perene sacrifício que tira os pecados do mundo!
Louvai, profetas do Senhor, a Senhora, porque Ela é a profetizada Profetiza a quem chegou o Espírito Santo com sua sombra para conhecer o Rei que tem por nome «Apres­sa-te a vencer e despojar teus inimigos»!
Louvai, Mártires do Senhor, a Senhora porque Ela foi mais que mártir, não só de Cristo e por amor de Cristo, como vós o fostes, mas no mesmo Cristo, cuja cruz a cru­cificava!
Louvai, Virgens do Senhor, a MARIA porque MARIA é da Virgindade a forma, a glória e o magistério! (...)
Todos os Santos, todos os Espíritos bem-aventurados, todas as criaturas do Céu e terra, louvem e exaltem e magnifiquem a MARIA, porque MARIA é a digníssima Rainha e absoluta Senhora dos Anjos e Santos e de todas as criaturas!
Glória a Deus Pai, de quem MARIA é filha primo­génita; glória a Deus Filho, de quem MARIA é Mãe ver­dadeira; glória a Deus Espírito Santo, de quem MARIA é Esposa escolhida; glória à Beatíssima Trindade de quem MARIA é sacrário animado, e agora e sempre e por séculos de séculos!
Amém.

Em cada frase, depois da anáfora louvai, vem um vocativo, que envia para uma realidade sempre bíblica; a seguir, o autor declara que Maria supera essa realidade evocada. Isto até à doxologia que fecha o texto.

terça-feira, 6 de maio de 2008

MOMENTO POÉTICO 13

Hoje vou ler dois sonetos cujos autores passaram pela Póvoa de Varzim. Breves passagens nos dois casos; são eles o P.e Abel Varzim e o beneditino Fr. Bernardo de Vasconcelos. Curiosamente, ambos nasceram em 1902.
O P.e Abel Varzim, que era de Cristelo, Barcelos, não fez profissão de escritor, mas tem muito belas páginas. Faleceu em 1964. Era irmão da D. Maria Paz Varzim. É conhecido sobretudo por ter tomado desde muito cedo uma atitude de distanciamento face ao regime de Salazar e também pelo modo como lidou com o fenómeno da prostituição na sua paróquia do Bairro Alto, em Lisboa. Foi no seu tempo uma figura muito conceituada. Deixou extraordinários relatos das suas experiências.
O Sr. Manuel Lopes ofereceu-me um dia um livrinho do P.e Abel Varzim; chama-se Procissão dos Passos, uma Vivência no Bairro Alto. Eu já conhecia o conteúdo através dum volume maior. Parece-me que o adjectivo empolgante é a palavra certa para o caracterizar.
http://www.ecclesia.pt/destaque/abelvarzim/abel_varzim.htm
O beneditino Fr. Bernardo de Vasconcelos (1902-1932), esse era de mais longe, de Celorico de Basto. Morreu muito jovem e teve também uma vida de grande santidade, que os seus contemporâneos reconheceram. E reconheceram também o seu valor literário. Está em curso o processo para a sua beatificação e canonização.
Não conheço o seu livro de versos Cântico de Amor, mas por algumas referências que já vi à sua poesia, deduzo que deve ser muito bom. Dele só conheço um livro autobiográfico, Vida de Amor.
Segundo Frei Geraldo Coelho Dias, Frei Bernardo Vasconcelos é um dos "maiores "poetas místicos do nosso país (…) As suas poesias, afirma o mesmo professor, impressionaram profundamente os meios católicos da década de trinta e ainda hoje os seus versos catapultam a nossa alma para "os confins do sonho e da espiritualidade".
http://alexandrina.balasar.free.fr/bernardo_de_vasconcelos_pt.htm
Vamos aos sonetos: o do P.e Abel Varzim conta, figuradamente, a vastidão da decadência moral que encontrou na sua paróquia lisboeta e a luta titânica que desenvolveu para a enfrentar.

Desci, a passo e passo, a longa escada
Que leva em linha recta à podridão.
Mal eu cheguei, soou como um trovão
A mais feroz, sarcástica risada.

E vi!... eu vi a face desvairada
Do Mal erguer-se. E – tétrica visão –!
Fazer-me a mesma torva recepção
Numa sonora e louca gargalhada.

"Que fazes tu aqui? Tudo isto é meu!
Só meu! De mais ninguém! Fica-o sabendo!"
E, com rancor, tentou despedaçar-me.

Fiquei! Mas quem combate não sou eu,
Porque eu, só de ver o Mal, ia morrendo.
E morrendo inda estou só de lembrar-me.

Fr. Bernardo de Vasconcelos, no soneto que vou ler, compara os seus anseios místicos às ousadias dos voos duma águia que está acontemplar:

Voo de águia

- Debruçado, cismando, na janela,
Desfruto o voo teu — altivo e forte —
Quando buscas a estrela do teu norte
E eu o oriente à minha estrela.

- Sonhas altiva, e eu humilde, a glória,
Ambos no mesmo anseio, eterno, imenso...
Eu no sonhar o meu viver condenso,
Tu tens no voo — a esp 'rança de vitória.

- Enquanto nesse anseio inconsciente
Tu queres voar mais alto, imensamente,
Que os teus inda voaram pelos céus,

— Eu busco noutros céus, inda mais belos,
A meta a que se votam meus anelos
Na adoração extática de Deus.

Fr. Bernardo de Vasconcelos interveio no importante congresso eucarístico nacional que teve lugar em Braga em 1924; veio de lá encantado, particularmente com o que ouvi ao futuro Cardeal Patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira e a Salazar.

quarta-feira, 23 de abril de 2008

DO CONFUSO MUNDO À ILHA DOS AMORES

0 – Introdução

Falar sobre Os Lusíadas não é tarefa fácil. Mas o que pretendo fazer é só convidar quem me veio ouvir para uma reflexão sobre o sentido da Ilha dos Amores. Não está em causa dizer grandes novidades nem grandes verdades, mas só pensar um pouco sobre esta narrativa, num ambiente diferente do da aula. Aliás talvez ele seja um dos trechos mais difíceis da epopeia.
A Ilha dos Amores alonga-se por 220 estrofes, o que corresponde a quase dois cantos (se considerarmos o tamanho médio dos cantos d’Os Lusíadas).
E é uma narrativa predominantemente não histórica, de ficção. E porque é ficção ecoam nela muitos textos líricos de Camões, que ajudam a interpretá-la. Eu vou considerar sobretudo estes dois fragmentos:

Verdade, amor, razão, merecimento
qualquer alma farão segura e forte;
porém, fortuna, caso, tempo e sorte
têm do confuso mundo o regimento.

(Do soneto Verdade, amor, razão, merecimento)

Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

(Da canção Vinde cá, meu tão certo secretário)

Na quadra do soneto, o poeta considera o confuso mundo, o mundo real (onde os nossos méritos pessoais pouco contam, pois tudo depende do acaso, do tempo e da sorte) e um mundo ideal (onde a verdade, o amor, a razão e o mérito dariam segurança à nossa vida).
No segundo fragmento, confessa ele que, para suportar as dores sem fim com que a vida continuamente o atormenta, fabrica na fantasia fantásticas pinturas de alegria.
Nos dois fragmentos são afirmados um mundo real, tormentoso, confuso, e um mundo idealizado de felicidade.
Nesta perspectiva, a Ilha dos Amores seria, globalmente, uma fantástica pintura de alegria oposta à realidade do confuso mundo.

Vejamos então o plano da narrativa:


Plano da Ilha dos Amores

1. Preparativos (por parte de Vénus)

2. A écloga:
a. O locus amoenus
b. O idílio (encontro amoroso)
c. O caso de Leonardo
d. A interpretação alegórica

3. O banquete:
a. O banquete
b. O canto profético

4. A lição pós-prandial:
a. A máquina do mundo
b. O anúncio profético
c. O regresso à Pátria na companhia das ninfas

Qualquer uma destas quatro partes da narrativa é importante e não deve ser isolada do contexto. A razão dessa importância varia para cada caso.


1 – Os preparativos

Aparentemente esta parte dos preparativos é a mais fácil e a menos problemática: Vénus, que sempre esteve com os navegantes desde o princípio da epopeia, resolve presenteá-los com uma ilha de delícias e põe tudo em marcha para conseguir este ojectivo.
Eu vou-me fixar apenas numa das muitas estrofes dos preparativos, que vem particularmente ao encontro da ideia que orienta as minhas reflexões. É a 28.ª do c. IX, que descreve as altas e inesperadas preocupações morais que movem Vénus. Insisto nas as altas e inesperadas preocupações morais que a movem. O narrador está a falar na terceira pessoa, mas a focalização é interna, revela o pensamento da deusa:

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.

Ela refere-se primeiro às ordens religiosas e depois aos políticos (talvez anacronicamente, pois se calhar está a falar do tempo de Camões e não do tempo do Gama). Mas parece o cardeal a falar; e é para corrigir situações destas que prepara a Ilha divina…
Quem diria que estas eram as suas preocupações! E os meios de que vai lançar mão serão os mais aptos para atingir tais fins?
É indispensável que quem orienta a leitura do episódio tenha em atenção estes objectivos. Caso contrário, um dia poderá ser apodado de aldrabão.


2 - A écloga

Camões escreveu várias éclogas. A écloga canta normalmente a vida dos pastores, mas canta sobretudo os seus amores. O espaço da écloga é o campo, não um campo qualquer, mas um locus amoenus, um campo de beleza ideal, perfeitamente ecológico. O carácter não realista desta composição convida ao sonho, à ficção. Momentos de écloga afloram frequentemente quer em muitas composições poéticas que não são propriamente éclogas quer mesmo n’Os Lusíadas (é o caso de muitos sonetos e redondilhas que têm momentos pastoris, na lírica, e o episódio da Linda Inês, o do Adamastor…). A Ínsula divina, onde os nautas se vão deparar com as Ninfas, teria de ser um espaço idealizado de écloga, um belíssimo locus amoenus, cheio de verdura, de águas cantantes e cristalinas e de sol:

Três formosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na formosa ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde uma mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está para afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

Reparar que estas estrofes são dum entendimento excepcionalmente fácil, bem ao contrário das que se lhes seguem, muito dependentes das Metamorfoses de Ovídio, livro de cabeceira de Camões. De reparar que isto não descreve toda a ilha, pois que lá existe um maravilhoso palácio…
É neste espaço, muito longe do confuso mundo, que o poeta situa a parte da fantástica pintura de alegria que é o encontro amoroso dos nautas com as ninfas, a que chamei idílio.
Para o meu propósito, basta-me tecer algumas considerações sobre duas estrofes desse texto, de quando Leonardo persegue a ninfa Efire, que simula não lhe querer corresponder:

Todas de correr cansam, ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mim só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

Não canses, que me cansas! E se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, ainda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que sutil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
‘Tra la spiga e la man qual muro è messo’.

O texto é muito bonito, cheio de subtilezas maneiristas e conclui-se com uma citação de Petrarca.
Sabe-se que Leonardo representa Camões. Se na lírica o amor é para o poeta sempre ocasião para lamento, neste episódio de ficção, embora se faça claro eco desses lamentos, ele está fora do confuso mundo e por isso vai acabar bem sucedido, em alegria.
Não se justifica parar mais com o idílio, até porque é preciso distribuir o tempo por toda a narrativa. O que é indispensável é notar a interpretação alegórica que lhe dá poeta e que os planos de Vénus já continham. Ele alonga-se nessa interpretação. Veja-se por exemplo esta estrofe:

Que as Ninfas do Oceano, tão formosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra coisa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta ilha.

Repito o reparo que já fiz: um professor que não dê a devida importância a estes versos, provavelmente estará a enganar os seus alunos.
Vejam-se agora estas palavras dirigidas aos leitores, que rematam o canto:

Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos.

O encontro amoroso foi apenas um modo figurado de falar, e o poeta desclassifica com uma só vassourada todos os intérpretes boçais destas cenas. Todos sem excepção.
Antes de começar esta narrativa, escrevera o épico a respeito dos nautas:

O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Para contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito
Que o coração para ele é vaso estreito.

Isto é que estará figurado neste encontro, e será uma coisa tão pessoal como o amor.


3 - O banquete

Ainda no canto IX, já fala o poeta dum palácio que existe no cimo da ilha: «uma rica fábrica se erguia, / De cristal toda e de ouro puro e fino». Fábrica será construção, edifício. É neste novo espaço de maravilha (semelhante ao do Olimpo e ao do Palácio de Neptuno) que decorre o banquete. E deve ser mais importante que a cena anterior: é um momento de serenidade, de acordo entre as ninfas e os navegantes, que se aceitam mutuamente numa união definitiva, matrimonial; a comida e a bebida são superiores às dos deuses, a baixela é de ouro e diamante, há «subtis e argutos ditos» (certamente ao modo palaciano ou maneirista) – e há música. Mais, parece que há uma pequena orquestra ou banda («músicos instrumentos») e a respectiva solista, a sirena ou sereia. O efeito da música e do canto é soberbo:

Um súbito silêncio enfreia os ventos
E faz ir docemente murmurando
As águas, e nas casas naturais
Adormecer os brutos animais.

Deve estar aqui alguma reminiscência órfica, como aliás noutros passos da produção poética de Camões.
E que canta a sereia?
Em canto pretensamente profético (no nosso dia-a-dia não lidamos com profetas…), ela anuncia os feitos futuros de vários portugueses, nomeadamente dos vice-reis do Oriente. Neste devaneio pseudo-profético, os nautas acedem a uma certa pseudo-omnisciência divinizante, que se reforçará à frente.
Eu conheço pouco da história do Império Português do Oriente (de que a sereia fala). Por isso o que vou dizer não vem inteiramente a propósito. São só algumas palavras sobre os dois nomes cimeiros da nossa gesta oriental, D. Afonso de Albuquerque e D. João de Castro.
D. Afonso de Albuquerque foi quem tomou Goa e Malaca, pilares do domínio marítimo no Índico e parte do Pacífico. Era descendente em sexto grau do fundador do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde.
Convém saber uma coisa que não vem no texto, nem podia vir, que houve um bispo natural de Vila do Conde, que foi genealogista e geógrafo, D. João Ribeiro Gaio de seu nome, mais ou menos contemporâneo de Camões, que escreveu sobre essas paragens orientais das proximidades de Malaca. Um homem da nossa vizinhança, portanto, que também foi de lá.
D. João de Castro é um herói do tempo da juventude de Camões (morre em 1548) e estou em crer que as suas inauditas façanhas terão estimulado o poeta (quem sabe se decisivamente) a escrever Os Lusíadas. Este guerreiro, político e cientista teve, na hora da morte, a assistência de Fr. João de Vila do Conde (que com ele lidou em vida).
O contributo científico deste vice-rei relaciona-se com a derivação da agulha magnética. Mas como não foi publicado, mais tarde houve um estrangeiro quer o repetiu e ficou com os louros duma prioridade imerecida.


4 - A lição pós-prandial

Prândio, em latim, significa o jantar; mas o adjectivo pós-prandial tem algum uso em português. E é após o jantar, quando acabam o banquete e a música, que os navegantes vão contemplar uma nova maravilha. Falo também de lição por causa da mensagem contida nestes versos:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.

A professora vai ser Tétis, que fala ao modo duma profetisa antiga ou duma mística moderna a quem Deus revelasse as suas vontades..
Navegantes e ninfas sobem então a uma colina, «por um mato / Árduo, difícil, duro a humano trato», que é a imagem do caminho do saber. Temos certamente agora o momento supremo do poema, o da Máquina (ou transunto) do Mundo, que é uma original miniatura do universo ainda no modelo geocêntrico (a teoria heliocêntrica de Copérnico – 1473-1543 – ainda estava muito longe de ser aceite; ele fora só teórico):

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende».

Se a alguém parecesse que o idílio amoroso afastava irremediavelmente do poema o seu sentido católico, repare que ele é aqui reafirmado, como aliás em muito outros lugares[1].
Camões não acerta sempre: faz pouco sentido colocar Vénus lá atrás e agora Tétis nesta postura tão católica; mas foi assim que reiteradamente escreveu.
É indispensável compreender o sentido da totalidade da narrativa da Ilha dos Amores para nelas integrar tão harmoniosamente quanto possível as famosas estrofes da segunda metade do canto IX. Quem não conseguir isso tenha pelo menos a certeza de que pouco percebeu do episódio, mesmo dessas estrofes.
Reparemos ainda nalguns versos da presente lição. Na estrofe 82, ensina Tétis:

…………….. eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

Procede-se aqui à anulação dos deuses greco-romanos, o que já o poeta fizera no final do canto IX.
Isto merece-me um aparte. Esta anulação lembra-me um texto de S. Martinho de Dume (Dume é junto a Braga e S. Martinho viveu nos séculos V e VI) em que ele ensina também que os deuses são nada, ou menos do que nada, e depois insurge-se contra o hábito de os colocar nos nomes dos dias da semana. É curioso que só em português é que eles foram eliminados…
Passando por cima de novo momento proléptico, agora pela palavra de Tétis, e avançando muito, para o fim do episódio, não queria deixar de lembrar que é aqui que se anuncia o naufrágio em que Camões salva o manuscrito d’Os Lusíadas. Mas vejamos mais três versos, atribuídos ao narrador principal do poema, pois os navegantes estão já no mar:

Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

Se eles trouxeram com eles as Ninfas, nós poderemos ser parentes delas… Houve dois nautas vila-condenses na armada do Gama.
O que isto faz é confirmar que a idealização de alegria, onde parecia que a verdade, o amor, a razão e o mérito se tinham conjugado para exaltar os autores dum grande feito, são qualquer coisa de muito íntimo e pessoal. Ninguém os tira aos seus autores. O resto é aparato alegórico.
O mundo real é o da confusão, e nele não conta muitas vezes o mérito nem a verdade, mas a sorte, o aparente acaso.
A cada um de nós também apeteceria dizer:

Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo e o pão que como
lágrimas tristes são que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

Na Ilha dos Amores há um aspecto irónico. Camões coloca-a no momento da viagem em que os nautas passaram os momentos de maior horror, quando, no regresso, atravessavam o Índico. Pouco faltou para que morressem todos.
Se bem se repara, Camões usou, digamos, vários ingredientes para construir esta fantástica pintura de alegria: a fantasia e a alegoria, por momentos o erotismo, a mitologia, a história, a ciência do tempo e o cristianismo. A apreciação global do episódio não pode prescindir de nenhum.


ESEQ, 23/04/08



[1] Não se justificaria alguma aproximação entre o que chamei idílio e o nu do Juízo Final de Miguel Ângelo? Este mural foi aberto ao público em 1536.

terça-feira, 15 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 11

Na poesia de Camões, como na de Bocage e de outros poetas, há um antes e um agora, definidos por uma adesão determinada e datada à fé. Na Sôbolos rios, Camões fala da sua palinódia, do seu canto novo, de retractação:

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.

António José Saraiva escreveu uma vez que na vida do poeta terá ocorrido uma espécie de “elección inaciana, de golpe macedónico”, de uma conversão ao modo de alguns dos primeiros jesuítas. Mas os poemas camonianos não estão datados e por isso não podemos definir um momento preciso para essa conversão.
Mas Os Lusíadas tem data de publicação. E aí a adesão ao Cristianismo é entusiástica.
O soneto que vou ler, pelo tom que o percorre, parece do antes: o poeta expõe nele uma visão da vida onde se não sente uma mínima presença iluminadora da fé:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe o próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu.

Este soneto tem influência evidente do livro bíblico de Job e das narrativas apocalípticas. É um texto em que a dor de viver, o sem sentido do mundo são expressos com uma força inaudita. Em casos como este, parece-me que Camões tem a dureza dum Miguel Ângelo, com a sua conhecida terribilitá.
Veja-se agora como o soneto lido está distante destes versos das redondilhas de Sôbolos rios:

Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude:
E o que eu tomei por vício
Me faz grau para a virtude.

E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
A flauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;

Não cativo e aferrolhado
Na Babilónia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quanto já fiz
Do grão livro dos viventes.

E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
Cale-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz!

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.

As chamadas redondilhas de Sôbolos Rios são uma paráfrase, uma variação sobre o Salmo 120, onde ouvimos os judeus, cativos em Babilónia e saudosos da Templo de Jerusalém; aí podiam cantar livremente a gratidão ao seu Deus. Mas o poema Camões é complexo. Babel ou Babilónia representam os anos desregrados que o oprimiram, Jerusalém, onde fica Sião, é o Céu.
Mas está aqui também nítida influência do filósofo Platão.

sábado, 12 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 10

Este 10º momento poético é dedicado a Bocage (1765-1805). E ele merece-o. Embora eu só conheça pela rama a sua biografia, é sabido que morreu muito jovem (40 anos) e que no final da vida viveu uma sincera e profunda conversão. Isto deslegitima logo muita coisa que se diz e se escreve sobre ele. Mas há mais.
Vamos agora ouvir este conhecido soneto seu:

MEU SER EVAPOREI NA LIDA INSANA

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões que me arrastava.
Ah, cego, eu cria, ah, mísero, eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos!

Deus, ó Deus!... Quando a morte a luz me roube,
Ganhe num momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Vamos distinguir duas coisas no soneto, o reconhecimento sincero de que o poeta falhou a vida e a imaginária hiperbólica usada.
Em relação ao arrependimento, ele revê a vida passada e reconhece o seu falhanço:
Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel de paixões que me arrastava.
Esta alma, que sedenta em si não coube,/No abismo vos sumiu dos desenganos.
Etc.
Quanto à linguagem hiperbólica, vejam-se estes exemplos:
Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel de paixões que me arrastava.
De que inúmeros sóis a mente ufana/Existência falaz me não dourava!
E ainda estas apóstrofes declamatórias:
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Deus, ó Deus!...
Mas o poema desemboca na declaração de que o autor reconhece um antes e um agora:
Ganhe num momento o que perderam anos,/Saiba morrer o que viver não soube.
O antes é o período da vida falhada ("viver não soube") e o agora ("saiba morrer") é o do arrependimento e da conversão.
Mas há um segundo soneto onde o tema do arrependimento regressa ainda com mais força, é o que começa Já Bocage não sou: à cova escura.

Já Bocage não sou, à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento.
Eu aos céus ultrajei; o meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa, tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo: língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui!... A santidade
Manchei!... Oh, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Bocage não escreveu este soneto, ditou-o no leito da agonia. Mas no tom declamatório, empolado, continua igual a si mesmo
A segunda parte do soneto é um grito dirigido à juventude para que se acautele: "A santidade/Manchei!... "

Mas reparemos agora no verso final:

Rasga meus versos, crê na eternidade!

Uma vez ouvi na Escola Secundária de Eça de Queirós um professor de Coimbra a defender que se não devia publicar A Tragédia da Rua das Flores de Eça de Queirós, porque ele a não publicou e integrou o que no livro havia de mais válido n’Os Maias. Eu penso que a razão invocada é válida, mas estas palavras tão claras de Bocage, ditadas do leito da agonia, não serão ainda muito mais para respeitar? Com que direito, carregando nas cores, se divulga um Bocage que nada tem a ver com este “testamento”? Eça não disse nada que se parecesse com isto.
Antes de terminar, porque, se calhar, não voltarei a Bocage, quero ler o terceto final do seu Hino a Deus:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Muito mal se pode tratar um homem…

quarta-feira, 2 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 09

Em tempo de Ressurreição, vamos ouvir hoje dois poemas de louvor a Deus, um de António Correia de Oliveira (1879-1960), o outro de Bocage (1765-1805). O primeiro tem o interesse de nos colocar numa perspectiva teológica que deveria ser bastante moderna no seu tempo e que mantém clara actualidade. É uma perspectiva que vemos por exemplo nessa extraordinária obra em prosa que são nos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner. É possível que esteja aqui algo do poeta alemão Rainer Maria Rilke ou do teólogo e paleontólogo francês Teilhard de Chardin. É interessante notar isto, porque a muitos poetas do séc. XX, hoje esquecidos, que cantaram o tema religioso, faltou uma verdadeira actualização teológica. O poema de António Correia de Oliveira intitula-se Louvemos ao Senhor!

Louvemos ao Senhor

Louvemos ao Senhor: as mãos ergamos
Como, ao Sinal da Luz, ávidos ramos
Na sombria espessura!

A terra seja o Adro; os céus a Igreja:
E a vocação sacerdotal esteja
Em toda a Criatura.

Louvemos ao Senhor. Sobre o Mistério,
Pulsados como as cordas do saltério,
Ressoem os sentidos:

Exulte, sob o Espírito que exulta,
Sidérea vida sufocada e oculta
Em olhos ou ouvidos.

Pois o verbo da Esp 'rança é sempre novo;
Tão cheio de Futuro qual um ovo
É cheio de asa e canto...

A agrura não entende o lavrador;
Mas, nós, — jeiras do Eterno, — ao seu amor
Profundemos o encanto.

Louvemos o Senhor. Dizei: “Bendito
Por quanto fez e nos deixou escrito
Em água, estrela ou flor”.

Deus, que de nós se paga e se contenta
Quando, ao Seu Livro, um homem acrescenta:
— Louvemos ao Senhor! —

Louvai-o nos caminhos da alegria;
E, — muito mais ainda, — no negro dia
Da súbita amargura...

A terra, seja o Adro, os céus a Igreja;
E a vocação sacerdotal esteja
Em toda a Criatura.

A propósito da «vocação sacerdotal», convém saber que a palavra sacerdote parece ter o sentido etimológico de aquele que comunica o sagrado, o intermediário do sagrado junto dos homens. No caso, a expressão indica que cabe ao homem ser o intermediário entre o mundo e Deus, ser a voz do louvor que as coisas mudas elevam ao Criador.
Agora um soneto de Bocage. Para o seu tempo, ele foi também um homem muito culto. Na sua estrofe inicial, há também algo de dimensão cósmica, pois o autor aprecia temas que o elevem a um tom grandioso. A terminar, dirigindo-se sempre a Deus, o poeta fala da sua alma acesa
em alta fé:

Ó Tu, que tens no seio a eternidade

Ó Tu, que tens no seio a eternidade
E em cujo resplendor o Sol se acende;
Grande, imutável Ser, de quem depende
A harmonia da etérea imensidade;

Amigo e benfeitor da humanidade,
Da mesma que Te nega e que Te ofende,
Manda ao meu coração que à dor se rende,
Manda o reforço da eficaz piedade!

Opressa, consternada a natureza,
Em mim com vozes lânguidas Te implora,
Órgãos do sentimento e da tristeza.

A Tua inteligência nada ignora.
Sabes bem que, de alta fé minha alma acesa,
Té nas angústias o teu braço adora.

Creio que faz mesmo falta uma antologia desta poesia. Há de facto no âmbito deste tema textos muito bem pensados, de grande elevação poética.

terça-feira, 25 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 08

Neste tempo de Páscoa, é incontornável uma referência a Jesus Cristo, o Vencedor da morte. Vou recorrer para isso a Camões, ao seu soneto Verdade, Amor, Razão, Merecimento.
O poeta faz nele uma reflexão sobre o sentido da vida humana. Como, em seu entender, tudo é confuso no mundo, o mérito não é reconhecido, os mais sábios enganam-se primariamente, ninguém sabe propor um caminho de autenticidade, conclui então: «o melhor que tudo é crer em Cristo».

Verdade, Amor, Razão, Merecimento
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doutos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas
e por isso é melhor ter muito visto.

Coisas há aí que passam sem ser cridas
e coisas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor que tudo é crer em Cristo.

Este soneto é sem dúvida um dos grandes sonetos de Camões. A grandeza vem-lhe da profundeza do olhar do poeta sobre o mundo, sobre a situação existencial do homem e também da descoberta do porto de abrigo no Homem-Deus, o único capaz de dar sentido definitivo à vida humana.
Mas o mais conhecido dos poemas de tema religioso de Camões são as chamadas redondilhas
Sôbolos rios. Vamos ler também um pouco do que aí escreveu. Não é texto fácil, por isso vou ler só algumas estrofes, inclusive não seguidas. O poeta dirige-se ao Salvador, a Quem chama «Senhor e grão Capitão / da alta torre de Sião», e suplica-Lhe que o ajude a vencer as grandes dificuldades que encontra no caminho que conduz a Sião, ao Céu.

A Vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
Da alta torre de Sião,
À qual não posso subir,
Se me Vós não dais a mão.



Não basta minha fraqueza
Pera me dar defensão,
Se Vós, santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de misérias cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,

Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste.

Para terminar, os versos finais do poema Liberdade, de Fernando Pessoa. Não é que sejam de espantar, e contêm até palavras ofensivas para Jesus Cristo. Mas ver-se-á que fazem algum sentido aqui:

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

sábado, 22 de março de 2008

O QUE É O MOMENTO POÉTICO

O momento poético é uma rubrica semanal de poesia de tema religioso apresentada na Rádio Onda Viva, da Póvoa de Varzim. Os momentos que já foram para o ar são aqueles que aqui constam. Os próximos serão colocados neste blogue semanalmente, à medida que forem sendo gravados. Em Sábado Aleluia colocamos aqui a parte do texto litúrgico denominado Precónio Pascal, que se canta na Vigília de Sábado Santo. Ele é um texto poético, verdadeiramente épico. Épico talvez no mais pleno sentido da palavra, pois que só aqui se realiza aquela união entre o Céu e a Terra que pretendem cantar as epopeias. É o poema da Ressurreição.
No Filho ressuscitado, abre-se aos homens o caminho para o Pai. Veja-se este excerto:



O POEMA DA RESSURREIÇÃO

Exulte de alegria a multidão dos Anjos, exultem as assem­bleias celestes, ressoem hinos de glória, para anunciar o triunfo de tão grande Rei!
Rejubile também a terra, inundada por tão grande claridade, porque a luz de Cristo, o Rei eterno, dissipa as trevas de todo o mundo!
Alegre-se a Igreja, nossa mãe, adornada com os fulgores de tão grande luz, e ressoem neste templo as aclamações do povo de Deus! ...
É verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação proclamar com todo o fervor da alma e toda a nossa voz os louvores de Deus invisível, Pai omnipotente, e do seu Filho Unigénito, Jesus Cristo, Nosso Senhor. ...
Esta é a noite, em que libertastes do cativeiro do Egipto os fi­lhos de Israel, nossos pais, e os fizestes atravessar a pé enxuto o Mar Vermelho.
Esta é a noite, em que a coluna de fogo dissipou as trevas do pecado.
Esta é a noite, que liberta das trevas do pecado e da cor­rupção do mundo aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo, noite que os restitui à graça e os reúne na comunhão dos Santos.
Esta é a noite, em que Cristo, quebrando as cadeias da morte, Se levanta glorioso do túmulo.
Oh admirável condescendência da vossa graça! Oh incom­parável predilecção do vosso amor! Para resgatar o escravo entregastes o Filho!
Oh necessário pecado de Adão, que foi destruído pela morte de Cristo! Oh ditosa culpa, que nos mereceu tão grande Redentor!
Esta noite santa afugenta os crimes, lava as culpas; restitui a inocência aos pecadores, dá alegria aos tristes.
Oh noite ditosa, em que o Céu se une à terra, em que o homem se encontra com Deus!
Nesta noite de graça, aceitai, Pai santo, este sacrifício ves­pertino de louvor, que, na oblação deste círio, pelas mãos dos seus ministros Vos apresenta a santa Igreja.

sexta-feira, 21 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 07

A nossa cultura está, com grave prejuízo, dominada pela esquerda. Toda esta poesia que temos aqui ouvido e que continuaremos a ouvir parece ter sido votada ao esquecimento, como se em tantos séculos de cristianismo os poetas não tivessem cantado a sua fé. Ou pior, como se eles fossem blasfemos como são tantos poetas do último século e meio.
Como estamos na Semana Santa, vamos ouvir hoje um soneto de Fr. Agostinho da Cruz (1540-1619), que nos fala do Crucificado, e um excerto duma elegia de Camões (1524-1580).
Fr. Agostinho da Cruz, que era natural de Ponte do Lima e foi monge na Arrábida, junto ao Setúbal, faz perpassar no seu texto algo do
Stabat Mater, isto é, da contemplação presencial do sofrimento de Cristo. O Stabat Mater é um hino litúrgico que nos fala de Nossa Senhora junto à Cruz, da Senhora das Dores. O soneto intitula-se Às Chagas.

Às Chagas

Divinas mãos e pés, peito rasgado,
Chagas em brandas carnes imprimidas,
Meu Deus, que por salvar almas perdidas,
Por elas quereis ser crucificado!

Outra fé, outro amor, outro cuidado,
Outras dores às vossas são devidas;
Outros corações limpos, outras vidas,
Outro querer no vosso transformado!

Em vós se encerrou toda a piedade,
Ficou no mundo só toda a crueza;
Por isso cada um deu do que tinha:

Claros sinais de amor, ah, saudade,
Minha consolação, minha firmeza,
Chagas de meu Senhor, redenção minha!

Fr. Agostinho da Cruz é muito sensível à evocação do sofrimento do Salvador. Ele sabe que tal dor lhe diz respeito: ela é o mais louco acto de amor de Deus à humanidade, e decide a eternidade de cada homem e cada mulher em particular.
O fragmento de Camões que vou ler agora pertence à elegia
À Paixão de Cristo Nosso Senhor. Nele contemplamos Jesus que vai do tribunal de Pilatos para o Calvário. O poeta é sensibilíssimo às injustiças praticadas contra o Salvador e aos tormentos de que é vítima. Nenhum poeta português terá abordado tão bem este tema, fosse ele sacerdote e monge. A linguagem não é particularmente difícil; é até relativamente acessível.

Ó sumo Deus, Tu mesmo Te condenas,
pelo mal em que eu só sou tão culpado,
a tamanhas afrontas, tantas penas!

Por mim, Senhor, no mundo reputado
por falso e por quebrantador da lei,
a fama a Ti se põe de meu pecado.

Eu, Senhor, sou ladrão; Tu, sumo Rei;
eu, só, furtei; Tu, com ladrões padeces;
a pena a Ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; Tu, sumo preço,
em preço vil te pões, por me tirares
do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-Te, e Tu, por me ganhares,
Te dás aos homens baixos, que Te vendem,s
ó para os homens presos resgatares.

A Ti, que as almas soltas, a Ti prendem;
a Ti, sumo Juiz, ante juízeste acusam,
pelo erro dos que Te ofendem.

Chamam-Te malfeitor, não contradizes;
sendo Tu dos profetas a certeza,
dizem que quem Te fere profetizes.

Riem-se de Ti; Tu choras a crueza
que sobre eles virá. A gente dura,
por quem Tu vens ao mundo, Te despreza.

O teu rosto, de cuja formosura
se veste o Céu e o Sol resplandecente,
diante de quem muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,
de precioso sangue está banha
docuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,s
obre todos os santos sacrossanto,
de açoutes rigorosos flagelado;

depois coberto mal de um pobre manto,
que se pegava às carnes magoadas,
para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-No as chagas não curadas,
um tormento causando-Lhe, excessivo,
ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,
de resplendor ornadas, Lhe arrancavam,
para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas O levavam,
levando sobre os ombros o troféu
das vitórias que as almas alcançavam.

E tu que passas, homem cireneu,
ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro
e dos longos jejuns debilitado,
não pode já co peso do madeiro.

Oh, não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
suportai, Cavaleiro sublimado!

Camões, como Bocage, deixou-nos dezenas de páginas de poemas de tema religioso, vibrantes de qualidade poética, que a escola não apresenta aos alunos de hoje. Havemos de evocar mais algumas dessas páginas.

quinta-feira, 20 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 06

Hoje vou apresentar dois sonetos da Marquesa de Alorna (1750-1839) e um trecho da Cruz mutilada de Alexandre Herculano (1810-1877). Faz sentido juntar estes autores, pois Herculano tem para com a Marquesa confessado débito (a Marquesa ajudou-o).
O texto de Herculano é um texto romântico, de um homem que entrou em conflito com a Hierarquia católica. Não é assim com a Marquesa. E sobretudo os seus textos de carácter místico têm um tom de devoção filial e íntima que encantam. Deixou também uma extensa e muito bela
Paráfrase dos versos de Santa Teresa de Jesus (Santa Teresa de Ávila), que um dia espero apresentar.
Esta Marquesa foi uma mulher muito culta, politicamente empenhada, que por isso sofreu logo na infância e mais tarde chegou a viver muitos anos no exílio, na Inglaterra.
O soneto que agora vou ler é o primeiro dum conjunto de dois que tem por título
A Jesus Cristo.

A Jesus Cristo

Se a dar-Vos morte, ó Deus, um só pecado
Bastou que Adão tivesse cometido,
Eu, que em tantos, Senhor, hei delinquido,
Quantas mortes Vos tenho renovado!

Adão, de um só delito horrorizado,
O deixou no seu pranto submergido;
Porém meu coração endurecido
Não duvidou mil vezes ser culpado.

Eu fui, Senhor, eu fui quem, descontente
Da morte que Vos deram sem piedade,
O peito Vos rasguei mais cruelmente.

Se não lavam a minha iniquidade
As lágrimas que choro amargamente,
Ai de mim, na espantosa eternidade!

Nós estamos a caminho da Páscoa e podíamos aprender neste poema a ter muito mais respeito pela Cruz, pelo sofrimento atroz do Salvador. A mensagem deste soneto está muito próxima da mensagem principal da Beata Alexandrina. Mas, pessoalmente, gosto mais deste outro soneto. Intitula-se: Achando-se a autora doente, em perigo de vida.

Achando-se a autora doente, em perigo de vida

Este ser que me deu a natureza,
Vai desorganizando a enfermidade;
Sinto apagar da vida a claridade,
Doma as corpóreas forças a fraqueza.

Vai crescendo em minha alma a fortaleza,
Quando cresce do mal a intensidade;
As portas áureas me abre a Eternidade
E lá cessam cuidados e tristeza.

Vou amar Quem somente é sempre amável,
Em oxigénias luzes abrasar-me,
Nunca errar nem temer gente implacável.

Vou nos jardins celestes recrear-me
E no seio de um Deus justo, adorável,
A tudo o que me falta associar-me.

Há aqui uma saudade do Céu que se encontra só em textos de profunda vivência religiosa, como, por exemplo, em certo poema de Camões. Esta confiança sem exageros, esta ternura dita em palavras simples e exactas, esta ânsia da partida que torna a morte um triunfo faz-me admirar este poema.
Depois da voz feminina, sensível da Marquesa da Alorna, vem o tom mais empolado de Herculano. Mas como ele canta as excelências da Cruz, ouçamo-lo neste tempo em que a Quaresma já vai adiantada.


Cruz mutilada
(fragmento inicial)

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém quando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,
Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,
E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

Isto até é bonito, mesmo que possa ser mais literatura, lirismo que religiosidade autêntica.

quarta-feira, 19 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 05

Os dois sonetos que trago hoje são de assunto bíblico, mas não de tema propriamente religioso. Isto é, nos dois casos, os seus autores aproveitam uma sugestão bíblica e escrevem poemas de amor.
O primeiro é de Camões. Noutros tempos era um texto muito divulgado e por isso conhecido, hoje não é tanto. Veja-se:


Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

O tema dos amores contrariados é dos mais frequentes em Camões. Natural é portanto que ele versificasse este episódio do Génesis. Jacob acabou por casar com Raquel e ter numerosos filhos, que estão na origem das doze tribos hebraicas.

O segundo soneto é de Antero de Quental. Ele versifica um momento do Cântico dos Cânticos, livro que já é de si muito poético. É curioso que este livro faça as delícias dos místicos, que vêem no canto do apaixonado à sua amada o amor com que Jesus ama a Igreja. Antero, por sinal, escolheu um fragmento em que fala a amada.
O soneto tem por título «A Sulamita», que é personagem da obra original, e começa com umas palavras da amada, em latim que, traduzidas, dizem: Eu durmo, mas o meu coração está desperto.

A SULAMITA

Ego dormio, et cor meum vigilat
Cântico dos Cânticos

Quem anda lá fora pela vinha,
Na sombra do luar, meio encoberto,
Subtil nos passos e espreitando incerto,
Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me acordou… não sei que tinha…
Pareceu-me senti-lo aqui tão perto…
Seja alta noite, seja num deserto,
Quem ama até nos sonhos adivinha…

Moças da minha terra, ao meu amado
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
Mas que pode ir contente e descansado,

Pois eu tão cedo adormeci, conforme
É meu costume, olhai, dormia, embora,
Porque o meu coração é que não dorme…

Como se vê, é uma bela promessa de amor, da parte da jovem Sulamita.
Sobre os sonetos era isto que tinha a dizer, mas vou tecer ainda unas considerações sobre o nome Jacob, que apareceu no soneto de Camões.
Entre os apóstolos há dois que em grego e latim têm o nome de Jacob - mas não em português. Vamos ver o que se passou.
Isto tem a ver com a palavra santo. A forma feminina de santo serve para qualquer mulher: santa Ana, santa Isabel, santa Maria, santa Teresa… Mas não é assim na forma masculina. Dizemos santo António, santo Hilário, santo Agostinho, mas são Pedro, são Paulo, são Tomás…
Que se passa então com o Jacob? Em latim, como em grego, este nome lia-se Iácob. Então deveríamos ter santo Iácob. Mas a evolução fonética popular foi transformando a expressão, talvez assim: Santiacob > Santiaco > Santiago. Depois, separou-a outra vez em duas palavras e ficou são Tiago. E então aqueles apóstolos ficaram a ser Tiagos.
De Iácob também derivou Jaime, em português, e os nomes correspondentes, por exemplo, em inglês, James.
Pelos vistos não faz grande diferença para a evolução da palavra que o nome dos apóstolos fosse de facto, na origen, Iácobo e não propriamente Iácob.