quarta-feira, 19 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 05

Os dois sonetos que trago hoje são de assunto bíblico, mas não de tema propriamente religioso. Isto é, nos dois casos, os seus autores aproveitam uma sugestão bíblica e escrevem poemas de amor.
O primeiro é de Camões. Noutros tempos era um texto muito divulgado e por isso conhecido, hoje não é tanto. Veja-se:


Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

O tema dos amores contrariados é dos mais frequentes em Camões. Natural é portanto que ele versificasse este episódio do Génesis. Jacob acabou por casar com Raquel e ter numerosos filhos, que estão na origem das doze tribos hebraicas.

O segundo soneto é de Antero de Quental. Ele versifica um momento do Cântico dos Cânticos, livro que já é de si muito poético. É curioso que este livro faça as delícias dos místicos, que vêem no canto do apaixonado à sua amada o amor com que Jesus ama a Igreja. Antero, por sinal, escolheu um fragmento em que fala a amada.
O soneto tem por título «A Sulamita», que é personagem da obra original, e começa com umas palavras da amada, em latim que, traduzidas, dizem: Eu durmo, mas o meu coração está desperto.

A SULAMITA

Ego dormio, et cor meum vigilat
Cântico dos Cânticos

Quem anda lá fora pela vinha,
Na sombra do luar, meio encoberto,
Subtil nos passos e espreitando incerto,
Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me acordou… não sei que tinha…
Pareceu-me senti-lo aqui tão perto…
Seja alta noite, seja num deserto,
Quem ama até nos sonhos adivinha…

Moças da minha terra, ao meu amado
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
Mas que pode ir contente e descansado,

Pois eu tão cedo adormeci, conforme
É meu costume, olhai, dormia, embora,
Porque o meu coração é que não dorme…

Como se vê, é uma bela promessa de amor, da parte da jovem Sulamita.
Sobre os sonetos era isto que tinha a dizer, mas vou tecer ainda unas considerações sobre o nome Jacob, que apareceu no soneto de Camões.
Entre os apóstolos há dois que em grego e latim têm o nome de Jacob - mas não em português. Vamos ver o que se passou.
Isto tem a ver com a palavra santo. A forma feminina de santo serve para qualquer mulher: santa Ana, santa Isabel, santa Maria, santa Teresa… Mas não é assim na forma masculina. Dizemos santo António, santo Hilário, santo Agostinho, mas são Pedro, são Paulo, são Tomás…
Que se passa então com o Jacob? Em latim, como em grego, este nome lia-se Iácob. Então deveríamos ter santo Iácob. Mas a evolução fonética popular foi transformando a expressão, talvez assim: Santiacob > Santiaco > Santiago. Depois, separou-a outra vez em duas palavras e ficou são Tiago. E então aqueles apóstolos ficaram a ser Tiagos.
De Iácob também derivou Jaime, em português, e os nomes correspondentes, por exemplo, em inglês, James.
Pelos vistos não faz grande diferença para a evolução da palavra que o nome dos apóstolos fosse de facto, na origen, Iácobo e não propriamente Iácob.

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