quinta-feira, 13 de março de 2008

“Felizmente há luar!”

Felizmente há luar! é uma peça de teatro de esquerda, revolucionária, escrita sob influência directa do teatro épico de Brecht.
O autor escolhe uma época em que o poder opressivo, absolutista, limitava a liberdade de expressão (final da 2ª década do séc. XIX), tomando-a como espelho da situação que se vivia na actualidade (1960), sob o regime de Salazar. A obra denuncia as prepotências do regime absolutista de modo directo e naturalmente as do regime que então vigorava de modo indirecto.
O teatro épico é um teatro para o povo, didáctico e não visa promover a empatia com a acção que decorre no palco. Recorre a processos elementares (por comparação com o teatro rico tradicional), valorizando a luminotecnia e a sonoplastia. Épico quer dizer narrativo, o que é contraditório com a noção tradicional de teatro. Mas, à imitação de Bretch, que pretende o distanciamento face à acção desenvolvida no palco, a narração pode aqui contribuir para desfazer a ilusão da realidade.
Em Felizmente há luar! não há voz off (narrador), mas é dada importância em especial à luminotecnia: a passagem de uma cena para a outra não implica a saída de personagens pelos bastidores, mas apenas o apagar e o acender de luzes apontadas na direcção dessas personagens.
Gomes Freire de Andrade, o herói, foi um mercenário ao serviço de Napoleão e serviu ainda Catarina da Rússia. Após a derrota de Waterloo, pede e obtém a reabilitação (ele tinha servido à ordem do responsável pelas Invasões Francesas, Napoleão, ou seja, perante o país era visto como um traidor) e a readmissão nas fileiras (exército). Num país como Portugal, muito atrasado, com graves dificuldades económicas, onde o exército, acabadas as guerras ainda tinha um elevado número de homens em armas, cujo rei, D. João VI, se encontrava no Brasil, para onde era drenada parte significativa dos impostos recolhidos pelo Estado, Gomes Freire de Andrade, que seria um militar popular, representava facilmente os ideais da liberdade, fraternidade e igualdade que a Revolução Francesa tomara como lema. Os governadores do reino, a quem qualquer vento de revolução fazia temer (e com razão), perante os boatos e a agitação, tomam a medida drástica de eliminar aquele que poderia ser o seu natural cabecilha.
O primeiro acto mostra-nos em cena, inicialmente, camadas populares maltrapilhas; e depois, os governadores, que com muito pouco senso moral decidem eliminar Gomes Freire de Andrade.
Este acto é bastante pobre em termos dramáticos.
O segundo acto é mais vibrante e é dominado pela figura Matilde, que defende o seu companheiro (era amante de Gomes Freire de Andrade), com grande determinação e nobreza moral, face aos governadores (que convenientemente são retratados como corruptos e imorais). Por vezes tem-se a sensação de que esta heroína é um pouco anacrónica no seu papel feminino e reivindicador (parece mais uma revolucionária dos tempos modernos, com grande conhecimento teológico).
Gomes Freire de Andrade é enforcado e depois os seus restos mortais são queimados.
O título “Felizmente há luar!” origina-se de uma carta escrita na altura da execução em que se dafirmava que era bom que houvesse luar para que o povo de Lisboa, mesmo à distancia, pudesse ver o clarão que destruía e destruiria qualquer veleidade revolucionária. Na peça, é dada à frase um entendimento irónico: felizmente há luar e o povo de Lisboa, vendo que o seu herói se manteve firme na defesa do seu ideal até à morte, aprenderá que vale a pena lutar contra os opressores.
Nunca esquecer que toda a obra funciona como espelho da situação política vivida ao tempo em que foi escrita (ditadura de Salazar), o que é indispensável para valorizar nela o carácter épico ou brechtiano.
Curiosidade: ao tempo da Primeira República a data da morte de Gomes Freire de Andrade era feriado nacional, honrando a sua pretensa grandeza de herói exemplar.

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