segunda-feira, 17 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 03

Vou hoje ler uma versão versificada, rimada e ligeiramente acrescentada do Magnificat. Augusto Gil (1873-1929) não é propriamente o autor do poema, adaptou-o. Ele é um desses poetas de quem era frequente falar-se antes do 25 de Abril de 1974 e que é hoje quase completamente ignorado. O poema intitula-se Magnificat, pois é o canto de Nossa Senhora versificado. Não chega a ser uma paráfrase, isto é, uma espécie de variação sobre o tema. «Magnificat» é a palavra com que o texto começa na sua versão latina. Vamos ouvi-lo:

MAGNIFICAT!

A minha alma engrandece,
Glorifica o Senhor!

E todo o meu espírito estremece
E crepita e exulta e resplandece
Em Deus, meu Salvador!...

Beijo de orvalho na folhinha de erva
Baixou Deus da vertigem do infinito
Por sobre mim, sua humilhada serva,
A eterna luz do seu olhar bendito...

E fiquei para sempre iluminada
Nesse piedoso e límpido clarão!
E hão-de chamar-me bem-aventurada
Sempre! de geração em geração . ..

O seu nome é sagrado:
E o seu poder que nunca terá fim
(Por ter em mim poisado)
Não vistas maravilhas fez em mim!

E aos que o temem e a quem dele implora
Misericórdia e protecção clemente,
Deus encaminha-os — pela vida fora
E sempre, eternamente...

Manifestou a força do seu braço
E aos vãos, aos de orgulhoso pensamento,
Desfê-los — como a poeira, pelo espaço,
No turbilhão do vento...

Derruiu tronos e reis — pô-los de rastros...
— E aos humildes ergueu-os para os astros!
Deixou os ricos sem riqueza e nome
— E encheu de bens os que sentiam fome!

Com desvelado e carinhoso amor,
Protegeu Israel, seu servidor,

Marcou-lhe os firmes passos com sinais
De Bênçãos e clemência,
Conforme prometera a nossos pais,
A Abraão e a toda a sua descendência...

E eis que será perpetuamente assim
Nos séculos dos séculos sem fim!...

Como se sabe, o Magnificat original é canto de louvor e gratidão com que Nossa Senhora responde à saudação da sua prima Isabel, que a declara “bendita entre as mulheres”, isto é, a mais notável das mulheres. S. Lucas não estava lá, para A ouvir, mas procedeu como era uso dos historiadores do tempo, reconstituindo o que poderia ter sido o cântico original, se é que não ouviu mesmo Nossa Senhora sobre o assunto.
É curioso notar que este cântico tem muito evidentes aproximações a um outro, muito antigo, que vem no livro Primeiro de Samuel e atribuído a uma senhora de nome Ana.
S. Lucas distingue-se dos outros evangelistas ao menos por dois traços: é o mais mariano de todos eles e o seu evangelho é atravessado por um radicalismo muito curioso.
Já aqui no Magnificat se diz Deus abaixou os poderosos e exaltou os humildes, mas isto confirma-se inteiramente na sua versão das bem-aventuranças, onde os ricos e os poderosos são alvo da admoestação mais severa. Mas ele é também o evangelista do Filho Pródigo, que depois de malbaratar tudo o pai abraça, e do episódio do Bom Ladrão, a quem Jesus promete «hoje» o Céu só porque ele lho pediu numa atitude de respeito e arrependimento.

Sem comentários: