terça-feira, 13 de maio de 2008

Momento poético 14

O mês de Maio é dedicado a Nossa Senhora. Como não tive ocasião de começar a apresentar, desde o seu princípio, poesia sobre a Mãe de Deus aqui no momento poético, vou ao menos fazê-lo agora. Aliás, Maria é um tema maior da nossa poesia de tema religioso. Já se viu no Magnificat que todas as gerações hão-de proclamá-La bem-aventurada.
Começo com uma variação sobre a Ave-Maria, uma paráfrase cujo autor ignoro. Eu copiei-a já há tempos, mas não tive o cuidado de fixar o nome do autor. Ele dedica três quadras à Ave-Maria e duas à Santa Maria. São versos muito bem feitos.

Ave Maria

“Ave, celeste Rainha!”,
outrora um anjo dizia,
e os homens há vinte séculos
repetem «Ave Maria!»

Graças do Céu Vos inundam,
O Senhor convosco habita;
Entre todas as mulheres,
Vós sois a mulher bendita.

Como Vós não há, Senhora,
Quem tantas graças concentre;
Jesus, o Filho do Eterno,
É fruto do vosso ventre.

Santa Maria, piedosa
Mãe de Deus e Mãe das Dores,
Sois o amparo dos caídos,
Rogai por nós, pecadores.

Agora no mar da vida
Sede Vós seguro norte;
Fazei-nos entrar o porto
Na hora da nossa morte.


O próximo texto é dum sacerdote contemporâneo do P.e António Vieira, também pregador notável, mas bastante mais novo que ele, o P.e Manuel Bernardes: 1644-1710. É um texto poético, mas não em verso. É um hino ou cântico de louvor, construído sob inspiração bíblica, quer quanto à estrutura anafórica e paralelística, quer quanto ao conteúdo principal. Vejamo-lo:


Cântico dos Louvores da Mãe Admirável, Maria Santíssima, Senhora Nossa

Louvai, obras do Senhor, a Senhora porque Ela é a mais nobre, a mais excelente e perfeita obra do Senhor!
Louvai, Sol e Lua, a Senhora porque a Senhora é esco­lhida como Sol e formosa como a Lua!
Louvai, estrelas do firmamento, a Senhora porque Ela é a radiante estrela que guia os navegantes do mar deste século!
Louvai, nuvens do Senhor, a Senhora porque Ela é a nuvem leve em que desceu a nós o Verbo de Deus humanado!
Louvai, orvalhos da manhã, a Senhora porque Ela é o velo de Gedeão que embebeu o celeste orvalho do Divino Verbo!
Louvai, neves e geadas, a Senhora porque o candor de sua pureza é o refrigério dos incentivos de nossa carne!
Louvai, raios e relâmpagos, a Senhora porque Ela é o res­plendor claríssimo e eficacíssimo da luz da Divina Graça!
Louvai, todas as fontes e mares do Senhor, a Senhora porque a Senhora é fonte fechada com o selo de Deus, é o poço de águas vivas e o mar de todas as graças juntas!
Louvai, plantas e flores do campo, a Senhora porque Ela é a rosa de Jericó, o lírio entre espinhos, a palma de Cadés, o cedro do Líbano, a árvore da Vida, que nos produziu o fruto felicíssimo da vida eterna!
Louvai, montes do Senhor, a Senhora porque a Senhora é o monte santo de Sião, onde se fundou o templo vivo da Humanidade de Cristo!
Louvai, meninos inocentes, a Senhora porque de seu intacto ventre se dignou Deus nascer Menino para nos res­tituir à primeira inocência!
Louvai, sacerdotes do Senhor, a Senhora, pois ela foi a grande Sacerdotisa que em suas mãos tomou e ofereceu a Hóstia viva em perene sacrifício que tira os pecados do mundo!
Louvai, profetas do Senhor, a Senhora, porque Ela é a profetizada Profetiza a quem chegou o Espírito Santo com sua sombra para conhecer o Rei que tem por nome «Apres­sa-te a vencer e despojar teus inimigos»!
Louvai, Mártires do Senhor, a Senhora porque Ela foi mais que mártir, não só de Cristo e por amor de Cristo, como vós o fostes, mas no mesmo Cristo, cuja cruz a cru­cificava!
Louvai, Virgens do Senhor, a MARIA porque MARIA é da Virgindade a forma, a glória e o magistério! (...)
Todos os Santos, todos os Espíritos bem-aventurados, todas as criaturas do Céu e terra, louvem e exaltem e magnifiquem a MARIA, porque MARIA é a digníssima Rainha e absoluta Senhora dos Anjos e Santos e de todas as criaturas!
Glória a Deus Pai, de quem MARIA é filha primo­génita; glória a Deus Filho, de quem MARIA é Mãe ver­dadeira; glória a Deus Espírito Santo, de quem MARIA é Esposa escolhida; glória à Beatíssima Trindade de quem MARIA é sacrário animado, e agora e sempre e por séculos de séculos!
Amém.

Em cada frase, depois da anáfora louvai, vem um vocativo, que envia para uma realidade sempre bíblica; a seguir, o autor declara que Maria supera essa realidade evocada. Isto até à doxologia que fecha o texto.

terça-feira, 6 de maio de 2008

MOMENTO POÉTICO 13

Hoje vou ler dois sonetos cujos autores passaram pela Póvoa de Varzim. Breves passagens nos dois casos; são eles o P.e Abel Varzim e o beneditino Fr. Bernardo de Vasconcelos. Curiosamente, ambos nasceram em 1902.
O P.e Abel Varzim, que era de Cristelo, Barcelos, não fez profissão de escritor, mas tem muito belas páginas. Faleceu em 1964. Era irmão da D. Maria Paz Varzim. É conhecido sobretudo por ter tomado desde muito cedo uma atitude de distanciamento face ao regime de Salazar e também pelo modo como lidou com o fenómeno da prostituição na sua paróquia do Bairro Alto, em Lisboa. Foi no seu tempo uma figura muito conceituada. Deixou extraordinários relatos das suas experiências.
O Sr. Manuel Lopes ofereceu-me um dia um livrinho do P.e Abel Varzim; chama-se Procissão dos Passos, uma Vivência no Bairro Alto. Eu já conhecia o conteúdo através dum volume maior. Parece-me que o adjectivo empolgante é a palavra certa para o caracterizar.
http://www.ecclesia.pt/destaque/abelvarzim/abel_varzim.htm
O beneditino Fr. Bernardo de Vasconcelos (1902-1932), esse era de mais longe, de Celorico de Basto. Morreu muito jovem e teve também uma vida de grande santidade, que os seus contemporâneos reconheceram. E reconheceram também o seu valor literário. Está em curso o processo para a sua beatificação e canonização.
Não conheço o seu livro de versos Cântico de Amor, mas por algumas referências que já vi à sua poesia, deduzo que deve ser muito bom. Dele só conheço um livro autobiográfico, Vida de Amor.
Segundo Frei Geraldo Coelho Dias, Frei Bernardo Vasconcelos é um dos "maiores "poetas místicos do nosso país (…) As suas poesias, afirma o mesmo professor, impressionaram profundamente os meios católicos da década de trinta e ainda hoje os seus versos catapultam a nossa alma para "os confins do sonho e da espiritualidade".
http://alexandrina.balasar.free.fr/bernardo_de_vasconcelos_pt.htm
Vamos aos sonetos: o do P.e Abel Varzim conta, figuradamente, a vastidão da decadência moral que encontrou na sua paróquia lisboeta e a luta titânica que desenvolveu para a enfrentar.

Desci, a passo e passo, a longa escada
Que leva em linha recta à podridão.
Mal eu cheguei, soou como um trovão
A mais feroz, sarcástica risada.

E vi!... eu vi a face desvairada
Do Mal erguer-se. E – tétrica visão –!
Fazer-me a mesma torva recepção
Numa sonora e louca gargalhada.

"Que fazes tu aqui? Tudo isto é meu!
Só meu! De mais ninguém! Fica-o sabendo!"
E, com rancor, tentou despedaçar-me.

Fiquei! Mas quem combate não sou eu,
Porque eu, só de ver o Mal, ia morrendo.
E morrendo inda estou só de lembrar-me.

Fr. Bernardo de Vasconcelos, no soneto que vou ler, compara os seus anseios místicos às ousadias dos voos duma águia que está acontemplar:

Voo de águia

- Debruçado, cismando, na janela,
Desfruto o voo teu — altivo e forte —
Quando buscas a estrela do teu norte
E eu o oriente à minha estrela.

- Sonhas altiva, e eu humilde, a glória,
Ambos no mesmo anseio, eterno, imenso...
Eu no sonhar o meu viver condenso,
Tu tens no voo — a esp 'rança de vitória.

- Enquanto nesse anseio inconsciente
Tu queres voar mais alto, imensamente,
Que os teus inda voaram pelos céus,

— Eu busco noutros céus, inda mais belos,
A meta a que se votam meus anelos
Na adoração extática de Deus.

Fr. Bernardo de Vasconcelos interveio no importante congresso eucarístico nacional que teve lugar em Braga em 1924; veio de lá encantado, particularmente com o que ouvi ao futuro Cardeal Patriarca D. Manuel Gonçalves Cerejeira e a Salazar.