quarta-feira, 23 de abril de 2008

DO CONFUSO MUNDO À ILHA DOS AMORES

0 – Introdução

Falar sobre Os Lusíadas não é tarefa fácil. Mas o que pretendo fazer é só convidar quem me veio ouvir para uma reflexão sobre o sentido da Ilha dos Amores. Não está em causa dizer grandes novidades nem grandes verdades, mas só pensar um pouco sobre esta narrativa, num ambiente diferente do da aula. Aliás talvez ele seja um dos trechos mais difíceis da epopeia.
A Ilha dos Amores alonga-se por 220 estrofes, o que corresponde a quase dois cantos (se considerarmos o tamanho médio dos cantos d’Os Lusíadas).
E é uma narrativa predominantemente não histórica, de ficção. E porque é ficção ecoam nela muitos textos líricos de Camões, que ajudam a interpretá-la. Eu vou considerar sobretudo estes dois fragmentos:

Verdade, amor, razão, merecimento
qualquer alma farão segura e forte;
porém, fortuna, caso, tempo e sorte
têm do confuso mundo o regimento.

(Do soneto Verdade, amor, razão, merecimento)

Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre, e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo, e o pão que como
lágrimas tristes são, que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

(Da canção Vinde cá, meu tão certo secretário)

Na quadra do soneto, o poeta considera o confuso mundo, o mundo real (onde os nossos méritos pessoais pouco contam, pois tudo depende do acaso, do tempo e da sorte) e um mundo ideal (onde a verdade, o amor, a razão e o mérito dariam segurança à nossa vida).
No segundo fragmento, confessa ele que, para suportar as dores sem fim com que a vida continuamente o atormenta, fabrica na fantasia fantásticas pinturas de alegria.
Nos dois fragmentos são afirmados um mundo real, tormentoso, confuso, e um mundo idealizado de felicidade.
Nesta perspectiva, a Ilha dos Amores seria, globalmente, uma fantástica pintura de alegria oposta à realidade do confuso mundo.

Vejamos então o plano da narrativa:


Plano da Ilha dos Amores

1. Preparativos (por parte de Vénus)

2. A écloga:
a. O locus amoenus
b. O idílio (encontro amoroso)
c. O caso de Leonardo
d. A interpretação alegórica

3. O banquete:
a. O banquete
b. O canto profético

4. A lição pós-prandial:
a. A máquina do mundo
b. O anúncio profético
c. O regresso à Pátria na companhia das ninfas

Qualquer uma destas quatro partes da narrativa é importante e não deve ser isolada do contexto. A razão dessa importância varia para cada caso.


1 – Os preparativos

Aparentemente esta parte dos preparativos é a mais fácil e a menos problemática: Vénus, que sempre esteve com os navegantes desde o princípio da epopeia, resolve presenteá-los com uma ilha de delícias e põe tudo em marcha para conseguir este ojectivo.
Eu vou-me fixar apenas numa das muitas estrofes dos preparativos, que vem particularmente ao encontro da ideia que orienta as minhas reflexões. É a 28.ª do c. IX, que descreve as altas e inesperadas preocupações morais que movem Vénus. Insisto nas as altas e inesperadas preocupações morais que a movem. O narrador está a falar na terceira pessoa, mas a focalização é interna, revela o pensamento da deusa:

Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem.

Ela refere-se primeiro às ordens religiosas e depois aos políticos (talvez anacronicamente, pois se calhar está a falar do tempo de Camões e não do tempo do Gama). Mas parece o cardeal a falar; e é para corrigir situações destas que prepara a Ilha divina…
Quem diria que estas eram as suas preocupações! E os meios de que vai lançar mão serão os mais aptos para atingir tais fins?
É indispensável que quem orienta a leitura do episódio tenha em atenção estes objectivos. Caso contrário, um dia poderá ser apodado de aldrabão.


2 - A écloga

Camões escreveu várias éclogas. A écloga canta normalmente a vida dos pastores, mas canta sobretudo os seus amores. O espaço da écloga é o campo, não um campo qualquer, mas um locus amoenus, um campo de beleza ideal, perfeitamente ecológico. O carácter não realista desta composição convida ao sonho, à ficção. Momentos de écloga afloram frequentemente quer em muitas composições poéticas que não são propriamente éclogas quer mesmo n’Os Lusíadas (é o caso de muitos sonetos e redondilhas que têm momentos pastoris, na lírica, e o episódio da Linda Inês, o do Adamastor…). A Ínsula divina, onde os nautas se vão deparar com as Ninfas, teria de ser um espaço idealizado de écloga, um belíssimo locus amoenus, cheio de verdura, de águas cantantes e cristalinas e de sol:

Três formosos outeiros se mostravam,
Erguidos com soberba graciosa,
Que de gramíneo esmalte se adornavam,
Na formosa ilha, alegre e deleitosa.
Claras fontes e límpidas manavam
Do cume, que a verdura tem viçosa;
Por entre pedras alvas se deriva
A sonorosa linfa fugitiva.

Num vale ameno, que os outeiros fende,
Vinham as claras águas ajuntar-se,
Onde uma mesa fazem, que se estende
Tão bela quanto pode imaginar-se.
Arvoredo gentil sobre ela pende,
Como que pronto está para afeitar-se,
Vendo-se no cristal resplandecente,
Que em si o está pintando propriamente.

Reparar que estas estrofes são dum entendimento excepcionalmente fácil, bem ao contrário das que se lhes seguem, muito dependentes das Metamorfoses de Ovídio, livro de cabeceira de Camões. De reparar que isto não descreve toda a ilha, pois que lá existe um maravilhoso palácio…
É neste espaço, muito longe do confuso mundo, que o poeta situa a parte da fantástica pintura de alegria que é o encontro amoroso dos nautas com as ninfas, a que chamei idílio.
Para o meu propósito, basta-me tecer algumas considerações sobre duas estrofes desse texto, de quando Leonardo persegue a ninfa Efire, que simula não lhe querer corresponder:

Todas de correr cansam, ninfa pura,
Rendendo-se à vontade do inimigo;
Tu só de mim só foges na espessura?
Quem te disse que eu era o que te sigo?
Se to tem dito já aquela ventura
Que em toda a parte sempre anda comigo,
Oh, não na creias, porque eu, quando a cria,
Mil vezes cada hora me mentia.

Não canses, que me cansas! E se queres
Fugir-me, por que não possa tocar-te,
Minha ventura é tal que, ainda que esperes,
Ela fará que não possa alcançar-te.
Espera; quero ver, se tu quiseres,
Que sutil modo busca de escapar-te;
E notarás, no fim deste sucesso,
‘Tra la spiga e la man qual muro è messo’.

O texto é muito bonito, cheio de subtilezas maneiristas e conclui-se com uma citação de Petrarca.
Sabe-se que Leonardo representa Camões. Se na lírica o amor é para o poeta sempre ocasião para lamento, neste episódio de ficção, embora se faça claro eco desses lamentos, ele está fora do confuso mundo e por isso vai acabar bem sucedido, em alegria.
Não se justifica parar mais com o idílio, até porque é preciso distribuir o tempo por toda a narrativa. O que é indispensável é notar a interpretação alegórica que lhe dá poeta e que os planos de Vénus já continham. Ele alonga-se nessa interpretação. Veja-se por exemplo esta estrofe:

Que as Ninfas do Oceano, tão formosas,
Tétis e a Ilha angélica pintada,
Outra coisa não é que as deleitosas
Honras que a vida fazem sublimada.
Aquelas preminências gloriosas,
Os triunfos, a fronte coroada
De palma e louro, a glória e maravilha,
Estes são os deleites desta ilha.

Repito o reparo que já fiz: um professor que não dê a devida importância a estes versos, provavelmente estará a enganar os seus alunos.
Vejam-se agora estas palavras dirigidas aos leitores, que rematam o canto:

Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados
Sereis entre os heróis esclarecidos
E nesta Ilha de Vénus recebidos.

O encontro amoroso foi apenas um modo figurado de falar, e o poeta desclassifica com uma só vassourada todos os intérpretes boçais destas cenas. Todos sem excepção.
Antes de começar esta narrativa, escrevera o épico a respeito dos nautas:

O prazer de chegar à pátria cara,
A seus penates caros e parentes,
Para contar a peregrina e rara
Navegação, os vários céus e gentes;
Vir a lograr o prémio que ganhara,
Por tão longos trabalhos e acidentes:
Cada um tem por gosto tão perfeito
Que o coração para ele é vaso estreito.

Isto é que estará figurado neste encontro, e será uma coisa tão pessoal como o amor.


3 - O banquete

Ainda no canto IX, já fala o poeta dum palácio que existe no cimo da ilha: «uma rica fábrica se erguia, / De cristal toda e de ouro puro e fino». Fábrica será construção, edifício. É neste novo espaço de maravilha (semelhante ao do Olimpo e ao do Palácio de Neptuno) que decorre o banquete. E deve ser mais importante que a cena anterior: é um momento de serenidade, de acordo entre as ninfas e os navegantes, que se aceitam mutuamente numa união definitiva, matrimonial; a comida e a bebida são superiores às dos deuses, a baixela é de ouro e diamante, há «subtis e argutos ditos» (certamente ao modo palaciano ou maneirista) – e há música. Mais, parece que há uma pequena orquestra ou banda («músicos instrumentos») e a respectiva solista, a sirena ou sereia. O efeito da música e do canto é soberbo:

Um súbito silêncio enfreia os ventos
E faz ir docemente murmurando
As águas, e nas casas naturais
Adormecer os brutos animais.

Deve estar aqui alguma reminiscência órfica, como aliás noutros passos da produção poética de Camões.
E que canta a sereia?
Em canto pretensamente profético (no nosso dia-a-dia não lidamos com profetas…), ela anuncia os feitos futuros de vários portugueses, nomeadamente dos vice-reis do Oriente. Neste devaneio pseudo-profético, os nautas acedem a uma certa pseudo-omnisciência divinizante, que se reforçará à frente.
Eu conheço pouco da história do Império Português do Oriente (de que a sereia fala). Por isso o que vou dizer não vem inteiramente a propósito. São só algumas palavras sobre os dois nomes cimeiros da nossa gesta oriental, D. Afonso de Albuquerque e D. João de Castro.
D. Afonso de Albuquerque foi quem tomou Goa e Malaca, pilares do domínio marítimo no Índico e parte do Pacífico. Era descendente em sexto grau do fundador do Mosteiro de Santa Clara de Vila do Conde.
Convém saber uma coisa que não vem no texto, nem podia vir, que houve um bispo natural de Vila do Conde, que foi genealogista e geógrafo, D. João Ribeiro Gaio de seu nome, mais ou menos contemporâneo de Camões, que escreveu sobre essas paragens orientais das proximidades de Malaca. Um homem da nossa vizinhança, portanto, que também foi de lá.
D. João de Castro é um herói do tempo da juventude de Camões (morre em 1548) e estou em crer que as suas inauditas façanhas terão estimulado o poeta (quem sabe se decisivamente) a escrever Os Lusíadas. Este guerreiro, político e cientista teve, na hora da morte, a assistência de Fr. João de Vila do Conde (que com ele lidou em vida).
O contributo científico deste vice-rei relaciona-se com a derivação da agulha magnética. Mas como não foi publicado, mais tarde houve um estrangeiro quer o repetiu e ficou com os louros duma prioridade imerecida.


4 - A lição pós-prandial

Prândio, em latim, significa o jantar; mas o adjectivo pós-prandial tem algum uso em português. E é após o jantar, quando acabam o banquete e a música, que os navegantes vão contemplar uma nova maravilha. Falo também de lição por causa da mensagem contida nestes versos:

Faz-te mercê, barão, a Sapiência
Suprema de, cos olhos corporais,
Veres o que não pode a vã ciência
Dos errados e míseros mortais.

A professora vai ser Tétis, que fala ao modo duma profetisa antiga ou duma mística moderna a quem Deus revelasse as suas vontades..
Navegantes e ninfas sobem então a uma colina, «por um mato / Árduo, difícil, duro a humano trato», que é a imagem do caminho do saber. Temos certamente agora o momento supremo do poema, o da Máquina (ou transunto) do Mundo, que é uma original miniatura do universo ainda no modelo geocêntrico (a teoria heliocêntrica de Copérnico – 1473-1543 – ainda estava muito longe de ser aceite; ele fora só teórico):

Não andam muito que no erguido cume
Se acharam, onde um campo se esmaltava
De esmeraldas, rubis, tais que presume
A vista que divino chão pisava.
Aqui um globo vêem no ar, que o lume
Claríssimo por ele penetrava,
De modo que o seu centro está evidente,
Como a sua superfície, claramente.

Qual a matéria seja não se enxerga,
Mas enxerga-se bem que está composto
De vários orbes, que a Divina verga
Compôs, e um centro a todos só tem posto.
Volvendo, ora se abaixe, agora se erga,
Nunca se ergue ou se abaixa, e um mesmo rosto
Por toda a parte tem; e em toda a parte
Começa e acaba, enfim, por divina arte,

Uniforme, perfeito, em si sustido,
Qual, enfim, o Arquétipo que o criou.
Vendo o Gama este globo, comovido
De espanto e de desejo ali ficou.
Diz-lhe a Deusa: – «O transunto, reduzido
Em pequeno volume, aqui te dou
Do Mundo aos olhos teus, para que vejas
Por onde vás e irás e o que desejas.

Vês aqui a grande Máquina do Mundo,
Etérea e elemental, que fabricada
Assi foi do Saber, alto e profundo,
Que é sem princípio e meta limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo
Globo e sua superfície tão limada
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende».

Se a alguém parecesse que o idílio amoroso afastava irremediavelmente do poema o seu sentido católico, repare que ele é aqui reafirmado, como aliás em muito outros lugares[1].
Camões não acerta sempre: faz pouco sentido colocar Vénus lá atrás e agora Tétis nesta postura tão católica; mas foi assim que reiteradamente escreveu.
É indispensável compreender o sentido da totalidade da narrativa da Ilha dos Amores para nelas integrar tão harmoniosamente quanto possível as famosas estrofes da segunda metade do canto IX. Quem não conseguir isso tenha pelo menos a certeza de que pouco percebeu do episódio, mesmo dessas estrofes.
Reparemos ainda nalguns versos da presente lição. Na estrofe 82, ensina Tétis:

…………….. eu, Saturno e Jano,
Júpiter, Juno, fomos fabulosos,
Fingidos de mortal e cego engano.
Só para fazer versos deleitosos
Servimos; e, se mais o trato humano
Nos pode dar, é só que o nome nosso
Nestas estrelas pôs o engenho vosso.

Procede-se aqui à anulação dos deuses greco-romanos, o que já o poeta fizera no final do canto IX.
Isto merece-me um aparte. Esta anulação lembra-me um texto de S. Martinho de Dume (Dume é junto a Braga e S. Martinho viveu nos séculos V e VI) em que ele ensina também que os deuses são nada, ou menos do que nada, e depois insurge-se contra o hábito de os colocar nos nomes dos dias da semana. É curioso que só em português é que eles foram eliminados…
Passando por cima de novo momento proléptico, agora pela palavra de Tétis, e avançando muito, para o fim do episódio, não queria deixar de lembrar que é aqui que se anuncia o naufrágio em que Camões salva o manuscrito d’Os Lusíadas. Mas vejamos mais três versos, atribuídos ao narrador principal do poema, pois os navegantes estão já no mar:

Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente,
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.

Se eles trouxeram com eles as Ninfas, nós poderemos ser parentes delas… Houve dois nautas vila-condenses na armada do Gama.
O que isto faz é confirmar que a idealização de alegria, onde parecia que a verdade, o amor, a razão e o mérito se tinham conjugado para exaltar os autores dum grande feito, são qualquer coisa de muito íntimo e pessoal. Ninguém os tira aos seus autores. O resto é aparato alegórico.
O mundo real é o da confusão, e nele não conta muitas vezes o mérito nem a verdade, mas a sorte, o aparente acaso.
A cada um de nós também apeteceria dizer:

Mas a fraqueza humana, quando lança
os olhos no que corre e não alcança
senão memória dos passados anos,
as águas que então bebo e o pão que como
lágrimas tristes são que eu nunca domo
senão com fabricar na fantasia
fantásticas pinturas de alegria.

Na Ilha dos Amores há um aspecto irónico. Camões coloca-a no momento da viagem em que os nautas passaram os momentos de maior horror, quando, no regresso, atravessavam o Índico. Pouco faltou para que morressem todos.
Se bem se repara, Camões usou, digamos, vários ingredientes para construir esta fantástica pintura de alegria: a fantasia e a alegoria, por momentos o erotismo, a mitologia, a história, a ciência do tempo e o cristianismo. A apreciação global do episódio não pode prescindir de nenhum.


ESEQ, 23/04/08



[1] Não se justificaria alguma aproximação entre o que chamei idílio e o nu do Juízo Final de Miguel Ângelo? Este mural foi aberto ao público em 1536.

terça-feira, 15 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 11

Na poesia de Camões, como na de Bocage e de outros poetas, há um antes e um agora, definidos por uma adesão determinada e datada à fé. Na Sôbolos rios, Camões fala da sua palinódia, do seu canto novo, de retractação:

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.

António José Saraiva escreveu uma vez que na vida do poeta terá ocorrido uma espécie de “elección inaciana, de golpe macedónico”, de uma conversão ao modo de alguns dos primeiros jesuítas. Mas os poemas camonianos não estão datados e por isso não podemos definir um momento preciso para essa conversão.
Mas Os Lusíadas tem data de publicação. E aí a adesão ao Cristianismo é entusiástica.
O soneto que vou ler, pelo tom que o percorre, parece do antes: o poeta expõe nele uma visão da vida onde se não sente uma mínima presença iluminadora da fé:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe o próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu.

Este soneto tem influência evidente do livro bíblico de Job e das narrativas apocalípticas. É um texto em que a dor de viver, o sem sentido do mundo são expressos com uma força inaudita. Em casos como este, parece-me que Camões tem a dureza dum Miguel Ângelo, com a sua conhecida terribilitá.
Veja-se agora como o soneto lido está distante destes versos das redondilhas de Sôbolos rios:

Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude:
E o que eu tomei por vício
Me faz grau para a virtude.

E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
A flauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;

Não cativo e aferrolhado
Na Babilónia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quanto já fiz
Do grão livro dos viventes.

E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
Cale-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz!

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.

As chamadas redondilhas de Sôbolos Rios são uma paráfrase, uma variação sobre o Salmo 120, onde ouvimos os judeus, cativos em Babilónia e saudosos da Templo de Jerusalém; aí podiam cantar livremente a gratidão ao seu Deus. Mas o poema Camões é complexo. Babel ou Babilónia representam os anos desregrados que o oprimiram, Jerusalém, onde fica Sião, é o Céu.
Mas está aqui também nítida influência do filósofo Platão.

sábado, 12 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 10

Este 10º momento poético é dedicado a Bocage (1765-1805). E ele merece-o. Embora eu só conheça pela rama a sua biografia, é sabido que morreu muito jovem (40 anos) e que no final da vida viveu uma sincera e profunda conversão. Isto deslegitima logo muita coisa que se diz e se escreve sobre ele. Mas há mais.
Vamos agora ouvir este conhecido soneto seu:

MEU SER EVAPOREI NA LIDA INSANA

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões que me arrastava.
Ah, cego, eu cria, ah, mísero, eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos!

Deus, ó Deus!... Quando a morte a luz me roube,
Ganhe num momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Vamos distinguir duas coisas no soneto, o reconhecimento sincero de que o poeta falhou a vida e a imaginária hiperbólica usada.
Em relação ao arrependimento, ele revê a vida passada e reconhece o seu falhanço:
Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel de paixões que me arrastava.
Esta alma, que sedenta em si não coube,/No abismo vos sumiu dos desenganos.
Etc.
Quanto à linguagem hiperbólica, vejam-se estes exemplos:
Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel de paixões que me arrastava.
De que inúmeros sóis a mente ufana/Existência falaz me não dourava!
E ainda estas apóstrofes declamatórias:
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Deus, ó Deus!...
Mas o poema desemboca na declaração de que o autor reconhece um antes e um agora:
Ganhe num momento o que perderam anos,/Saiba morrer o que viver não soube.
O antes é o período da vida falhada ("viver não soube") e o agora ("saiba morrer") é o do arrependimento e da conversão.
Mas há um segundo soneto onde o tema do arrependimento regressa ainda com mais força, é o que começa Já Bocage não sou: à cova escura.

Já Bocage não sou, à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento.
Eu aos céus ultrajei; o meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa, tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo: língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui!... A santidade
Manchei!... Oh, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Bocage não escreveu este soneto, ditou-o no leito da agonia. Mas no tom declamatório, empolado, continua igual a si mesmo
A segunda parte do soneto é um grito dirigido à juventude para que se acautele: "A santidade/Manchei!... "

Mas reparemos agora no verso final:

Rasga meus versos, crê na eternidade!

Uma vez ouvi na Escola Secundária de Eça de Queirós um professor de Coimbra a defender que se não devia publicar A Tragédia da Rua das Flores de Eça de Queirós, porque ele a não publicou e integrou o que no livro havia de mais válido n’Os Maias. Eu penso que a razão invocada é válida, mas estas palavras tão claras de Bocage, ditadas do leito da agonia, não serão ainda muito mais para respeitar? Com que direito, carregando nas cores, se divulga um Bocage que nada tem a ver com este “testamento”? Eça não disse nada que se parecesse com isto.
Antes de terminar, porque, se calhar, não voltarei a Bocage, quero ler o terceto final do seu Hino a Deus:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Muito mal se pode tratar um homem…

quarta-feira, 2 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 09

Em tempo de Ressurreição, vamos ouvir hoje dois poemas de louvor a Deus, um de António Correia de Oliveira (1879-1960), o outro de Bocage (1765-1805). O primeiro tem o interesse de nos colocar numa perspectiva teológica que deveria ser bastante moderna no seu tempo e que mantém clara actualidade. É uma perspectiva que vemos por exemplo nessa extraordinária obra em prosa que são nos Contos Exemplares de Sophia de Mello Breyner. É possível que esteja aqui algo do poeta alemão Rainer Maria Rilke ou do teólogo e paleontólogo francês Teilhard de Chardin. É interessante notar isto, porque a muitos poetas do séc. XX, hoje esquecidos, que cantaram o tema religioso, faltou uma verdadeira actualização teológica. O poema de António Correia de Oliveira intitula-se Louvemos ao Senhor!

Louvemos ao Senhor

Louvemos ao Senhor: as mãos ergamos
Como, ao Sinal da Luz, ávidos ramos
Na sombria espessura!

A terra seja o Adro; os céus a Igreja:
E a vocação sacerdotal esteja
Em toda a Criatura.

Louvemos ao Senhor. Sobre o Mistério,
Pulsados como as cordas do saltério,
Ressoem os sentidos:

Exulte, sob o Espírito que exulta,
Sidérea vida sufocada e oculta
Em olhos ou ouvidos.

Pois o verbo da Esp 'rança é sempre novo;
Tão cheio de Futuro qual um ovo
É cheio de asa e canto...

A agrura não entende o lavrador;
Mas, nós, — jeiras do Eterno, — ao seu amor
Profundemos o encanto.

Louvemos o Senhor. Dizei: “Bendito
Por quanto fez e nos deixou escrito
Em água, estrela ou flor”.

Deus, que de nós se paga e se contenta
Quando, ao Seu Livro, um homem acrescenta:
— Louvemos ao Senhor! —

Louvai-o nos caminhos da alegria;
E, — muito mais ainda, — no negro dia
Da súbita amargura...

A terra, seja o Adro, os céus a Igreja;
E a vocação sacerdotal esteja
Em toda a Criatura.

A propósito da «vocação sacerdotal», convém saber que a palavra sacerdote parece ter o sentido etimológico de aquele que comunica o sagrado, o intermediário do sagrado junto dos homens. No caso, a expressão indica que cabe ao homem ser o intermediário entre o mundo e Deus, ser a voz do louvor que as coisas mudas elevam ao Criador.
Agora um soneto de Bocage. Para o seu tempo, ele foi também um homem muito culto. Na sua estrofe inicial, há também algo de dimensão cósmica, pois o autor aprecia temas que o elevem a um tom grandioso. A terminar, dirigindo-se sempre a Deus, o poeta fala da sua alma acesa
em alta fé:

Ó Tu, que tens no seio a eternidade

Ó Tu, que tens no seio a eternidade
E em cujo resplendor o Sol se acende;
Grande, imutável Ser, de quem depende
A harmonia da etérea imensidade;

Amigo e benfeitor da humanidade,
Da mesma que Te nega e que Te ofende,
Manda ao meu coração que à dor se rende,
Manda o reforço da eficaz piedade!

Opressa, consternada a natureza,
Em mim com vozes lânguidas Te implora,
Órgãos do sentimento e da tristeza.

A Tua inteligência nada ignora.
Sabes bem que, de alta fé minha alma acesa,
Té nas angústias o teu braço adora.

Creio que faz mesmo falta uma antologia desta poesia. Há de facto no âmbito deste tema textos muito bem pensados, de grande elevação poética.