terça-feira, 25 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 08

Neste tempo de Páscoa, é incontornável uma referência a Jesus Cristo, o Vencedor da morte. Vou recorrer para isso a Camões, ao seu soneto Verdade, Amor, Razão, Merecimento.
O poeta faz nele uma reflexão sobre o sentido da vida humana. Como, em seu entender, tudo é confuso no mundo, o mérito não é reconhecido, os mais sábios enganam-se primariamente, ninguém sabe propor um caminho de autenticidade, conclui então: «o melhor que tudo é crer em Cristo».

Verdade, Amor, Razão, Merecimento
qualquer alma farão segura e forte;
porém, Fortuna, Caso, Tempo e Sorte
têm do confuso mundo o regimento.

Efeitos mil revolve o pensamento
e não sabe a que causa se reporte;
mas sabe que o que é mais que vida e morte,
que não o alcança humano entendimento.

Doutos varões darão razões subidas,
mas são experiências mais provadas
e por isso é melhor ter muito visto.

Coisas há aí que passam sem ser cridas
e coisas cridas há sem ser passadas,
mas o melhor que tudo é crer em Cristo.

Este soneto é sem dúvida um dos grandes sonetos de Camões. A grandeza vem-lhe da profundeza do olhar do poeta sobre o mundo, sobre a situação existencial do homem e também da descoberta do porto de abrigo no Homem-Deus, o único capaz de dar sentido definitivo à vida humana.
Mas o mais conhecido dos poemas de tema religioso de Camões são as chamadas redondilhas
Sôbolos rios. Vamos ler também um pouco do que aí escreveu. Não é texto fácil, por isso vou ler só algumas estrofes, inclusive não seguidas. O poeta dirige-se ao Salvador, a Quem chama «Senhor e grão Capitão / da alta torre de Sião», e suplica-Lhe que o ajude a vencer as grandes dificuldades que encontra no caminho que conduz a Sião, ao Céu.

A Vós só me quero ir,
Senhor e grão Capitão
Da alta torre de Sião,
À qual não posso subir,
Se me Vós não dais a mão.



Não basta minha fraqueza
Pera me dar defensão,
Se Vós, santo Capitão,
Nesta minha fortaleza
Não puserdes guarnição.

E tu, ó carne que encantas,
Filha de Babel tão feia,
Toda de misérias cheia,
Que mil vezes te levantas
Contra quem te senhoreia,

Beato só pode ser
Quem com a ajuda celeste
Contra ti prevalecer,
E te vier a fazer
O mal que lhe tu fizeste.

Para terminar, os versos finais do poema Liberdade, de Fernando Pessoa. Não é que sejam de espantar, e contêm até palavras ofensivas para Jesus Cristo. Mas ver-se-á que fazem algum sentido aqui:

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...

sábado, 22 de março de 2008

O QUE É O MOMENTO POÉTICO

O momento poético é uma rubrica semanal de poesia de tema religioso apresentada na Rádio Onda Viva, da Póvoa de Varzim. Os momentos que já foram para o ar são aqueles que aqui constam. Os próximos serão colocados neste blogue semanalmente, à medida que forem sendo gravados. Em Sábado Aleluia colocamos aqui a parte do texto litúrgico denominado Precónio Pascal, que se canta na Vigília de Sábado Santo. Ele é um texto poético, verdadeiramente épico. Épico talvez no mais pleno sentido da palavra, pois que só aqui se realiza aquela união entre o Céu e a Terra que pretendem cantar as epopeias. É o poema da Ressurreição.
No Filho ressuscitado, abre-se aos homens o caminho para o Pai. Veja-se este excerto:



O POEMA DA RESSURREIÇÃO

Exulte de alegria a multidão dos Anjos, exultem as assem­bleias celestes, ressoem hinos de glória, para anunciar o triunfo de tão grande Rei!
Rejubile também a terra, inundada por tão grande claridade, porque a luz de Cristo, o Rei eterno, dissipa as trevas de todo o mundo!
Alegre-se a Igreja, nossa mãe, adornada com os fulgores de tão grande luz, e ressoem neste templo as aclamações do povo de Deus! ...
É verdadeiramente nosso dever, é nossa salvação proclamar com todo o fervor da alma e toda a nossa voz os louvores de Deus invisível, Pai omnipotente, e do seu Filho Unigénito, Jesus Cristo, Nosso Senhor. ...
Esta é a noite, em que libertastes do cativeiro do Egipto os fi­lhos de Israel, nossos pais, e os fizestes atravessar a pé enxuto o Mar Vermelho.
Esta é a noite, em que a coluna de fogo dissipou as trevas do pecado.
Esta é a noite, que liberta das trevas do pecado e da cor­rupção do mundo aqueles que hoje por toda a terra crêem em Cristo, noite que os restitui à graça e os reúne na comunhão dos Santos.
Esta é a noite, em que Cristo, quebrando as cadeias da morte, Se levanta glorioso do túmulo.
Oh admirável condescendência da vossa graça! Oh incom­parável predilecção do vosso amor! Para resgatar o escravo entregastes o Filho!
Oh necessário pecado de Adão, que foi destruído pela morte de Cristo! Oh ditosa culpa, que nos mereceu tão grande Redentor!
Esta noite santa afugenta os crimes, lava as culpas; restitui a inocência aos pecadores, dá alegria aos tristes.
Oh noite ditosa, em que o Céu se une à terra, em que o homem se encontra com Deus!
Nesta noite de graça, aceitai, Pai santo, este sacrifício ves­pertino de louvor, que, na oblação deste círio, pelas mãos dos seus ministros Vos apresenta a santa Igreja.

sexta-feira, 21 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 07

A nossa cultura está, com grave prejuízo, dominada pela esquerda. Toda esta poesia que temos aqui ouvido e que continuaremos a ouvir parece ter sido votada ao esquecimento, como se em tantos séculos de cristianismo os poetas não tivessem cantado a sua fé. Ou pior, como se eles fossem blasfemos como são tantos poetas do último século e meio.
Como estamos na Semana Santa, vamos ouvir hoje um soneto de Fr. Agostinho da Cruz (1540-1619), que nos fala do Crucificado, e um excerto duma elegia de Camões (1524-1580).
Fr. Agostinho da Cruz, que era natural de Ponte do Lima e foi monge na Arrábida, junto ao Setúbal, faz perpassar no seu texto algo do
Stabat Mater, isto é, da contemplação presencial do sofrimento de Cristo. O Stabat Mater é um hino litúrgico que nos fala de Nossa Senhora junto à Cruz, da Senhora das Dores. O soneto intitula-se Às Chagas.

Às Chagas

Divinas mãos e pés, peito rasgado,
Chagas em brandas carnes imprimidas,
Meu Deus, que por salvar almas perdidas,
Por elas quereis ser crucificado!

Outra fé, outro amor, outro cuidado,
Outras dores às vossas são devidas;
Outros corações limpos, outras vidas,
Outro querer no vosso transformado!

Em vós se encerrou toda a piedade,
Ficou no mundo só toda a crueza;
Por isso cada um deu do que tinha:

Claros sinais de amor, ah, saudade,
Minha consolação, minha firmeza,
Chagas de meu Senhor, redenção minha!

Fr. Agostinho da Cruz é muito sensível à evocação do sofrimento do Salvador. Ele sabe que tal dor lhe diz respeito: ela é o mais louco acto de amor de Deus à humanidade, e decide a eternidade de cada homem e cada mulher em particular.
O fragmento de Camões que vou ler agora pertence à elegia
À Paixão de Cristo Nosso Senhor. Nele contemplamos Jesus que vai do tribunal de Pilatos para o Calvário. O poeta é sensibilíssimo às injustiças praticadas contra o Salvador e aos tormentos de que é vítima. Nenhum poeta português terá abordado tão bem este tema, fosse ele sacerdote e monge. A linguagem não é particularmente difícil; é até relativamente acessível.

Ó sumo Deus, Tu mesmo Te condenas,
pelo mal em que eu só sou tão culpado,
a tamanhas afrontas, tantas penas!

Por mim, Senhor, no mundo reputado
por falso e por quebrantador da lei,
a fama a Ti se põe de meu pecado.

Eu, Senhor, sou ladrão; Tu, sumo Rei;
eu, só, furtei; Tu, com ladrões padeces;
a pena a Ti se dá do que eu pequei.

Eu, servo sem valor; Tu, sumo preço,
em preço vil te pões, por me tirares
do cativeiro eterno, que mereço.

Eu, por perder-Te, e Tu, por me ganhares,
Te dás aos homens baixos, que Te vendem,s
ó para os homens presos resgatares.

A Ti, que as almas soltas, a Ti prendem;
a Ti, sumo Juiz, ante juízeste acusam,
pelo erro dos que Te ofendem.

Chamam-Te malfeitor, não contradizes;
sendo Tu dos profetas a certeza,
dizem que quem Te fere profetizes.

Riem-se de Ti; Tu choras a crueza
que sobre eles virá. A gente dura,
por quem Tu vens ao mundo, Te despreza.

O teu rosto, de cuja formosura
se veste o Céu e o Sol resplandecente,
diante de quem muda está a Natura,

com cruas bofetadas da vil gente,
de precioso sangue está banha
docuspido, arrepelado cruelmente.

Aquele corpo tenro e delicado,s
obre todos os santos sacrossanto,
de açoutes rigorosos flagelado;

depois coberto mal de um pobre manto,
que se pegava às carnes magoadas,
para dobrar-lhe as dores outro tanto.

Magoavam-No as chagas não curadas,
um tormento causando-Lhe, excessivo,
ao despir pelas mãos cruéis e iradas.

As santíssimas barbas de Deus vivo,
de resplendor ornadas, Lhe arrancavam,
para desempenhar Adão cativo.

Com cordas pelas ruas O levavam,
levando sobre os ombros o troféu
das vitórias que as almas alcançavam.

E tu que passas, homem cireneu,
ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
que agora como humano enfraqueceu!

Olha que o corpo, aflito do marteiro
e dos longos jejuns debilitado,
não pode já co peso do madeiro.

Oh, não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
suportai, Cavaleiro sublimado!

Camões, como Bocage, deixou-nos dezenas de páginas de poemas de tema religioso, vibrantes de qualidade poética, que a escola não apresenta aos alunos de hoje. Havemos de evocar mais algumas dessas páginas.

quinta-feira, 20 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 06

Hoje vou apresentar dois sonetos da Marquesa de Alorna (1750-1839) e um trecho da Cruz mutilada de Alexandre Herculano (1810-1877). Faz sentido juntar estes autores, pois Herculano tem para com a Marquesa confessado débito (a Marquesa ajudou-o).
O texto de Herculano é um texto romântico, de um homem que entrou em conflito com a Hierarquia católica. Não é assim com a Marquesa. E sobretudo os seus textos de carácter místico têm um tom de devoção filial e íntima que encantam. Deixou também uma extensa e muito bela
Paráfrase dos versos de Santa Teresa de Jesus (Santa Teresa de Ávila), que um dia espero apresentar.
Esta Marquesa foi uma mulher muito culta, politicamente empenhada, que por isso sofreu logo na infância e mais tarde chegou a viver muitos anos no exílio, na Inglaterra.
O soneto que agora vou ler é o primeiro dum conjunto de dois que tem por título
A Jesus Cristo.

A Jesus Cristo

Se a dar-Vos morte, ó Deus, um só pecado
Bastou que Adão tivesse cometido,
Eu, que em tantos, Senhor, hei delinquido,
Quantas mortes Vos tenho renovado!

Adão, de um só delito horrorizado,
O deixou no seu pranto submergido;
Porém meu coração endurecido
Não duvidou mil vezes ser culpado.

Eu fui, Senhor, eu fui quem, descontente
Da morte que Vos deram sem piedade,
O peito Vos rasguei mais cruelmente.

Se não lavam a minha iniquidade
As lágrimas que choro amargamente,
Ai de mim, na espantosa eternidade!

Nós estamos a caminho da Páscoa e podíamos aprender neste poema a ter muito mais respeito pela Cruz, pelo sofrimento atroz do Salvador. A mensagem deste soneto está muito próxima da mensagem principal da Beata Alexandrina. Mas, pessoalmente, gosto mais deste outro soneto. Intitula-se: Achando-se a autora doente, em perigo de vida.

Achando-se a autora doente, em perigo de vida

Este ser que me deu a natureza,
Vai desorganizando a enfermidade;
Sinto apagar da vida a claridade,
Doma as corpóreas forças a fraqueza.

Vai crescendo em minha alma a fortaleza,
Quando cresce do mal a intensidade;
As portas áureas me abre a Eternidade
E lá cessam cuidados e tristeza.

Vou amar Quem somente é sempre amável,
Em oxigénias luzes abrasar-me,
Nunca errar nem temer gente implacável.

Vou nos jardins celestes recrear-me
E no seio de um Deus justo, adorável,
A tudo o que me falta associar-me.

Há aqui uma saudade do Céu que se encontra só em textos de profunda vivência religiosa, como, por exemplo, em certo poema de Camões. Esta confiança sem exageros, esta ternura dita em palavras simples e exactas, esta ânsia da partida que torna a morte um triunfo faz-me admirar este poema.
Depois da voz feminina, sensível da Marquesa da Alorna, vem o tom mais empolado de Herculano. Mas como ele canta as excelências da Cruz, ouçamo-lo neste tempo em que a Quaresma já vai adiantada.


Cruz mutilada
(fragmento inicial)

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério;
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó:

Porém quando mais te amo,
Ó cruz do meu Senhor,
É, se te encontro à tarde,
Antes de o Sol se pôr,
Na clareira da serra,
Que o arvoredo assombra,
Quando à luz que fenece
Se estira a tua sombra,
E o dia últimos raios
Com o luar mistura,
E o seu hino da tarde
O pinheiral murmura.

Isto até é bonito, mesmo que possa ser mais literatura, lirismo que religiosidade autêntica.

quarta-feira, 19 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 05

Os dois sonetos que trago hoje são de assunto bíblico, mas não de tema propriamente religioso. Isto é, nos dois casos, os seus autores aproveitam uma sugestão bíblica e escrevem poemas de amor.
O primeiro é de Camões. Noutros tempos era um texto muito divulgado e por isso conhecido, hoje não é tanto. Veja-se:


Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Lhe fora assim negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,
Dizendo: – Mais servira, se não fora
Para tão longo amor tão curta a vida!

O tema dos amores contrariados é dos mais frequentes em Camões. Natural é portanto que ele versificasse este episódio do Génesis. Jacob acabou por casar com Raquel e ter numerosos filhos, que estão na origem das doze tribos hebraicas.

O segundo soneto é de Antero de Quental. Ele versifica um momento do Cântico dos Cânticos, livro que já é de si muito poético. É curioso que este livro faça as delícias dos místicos, que vêem no canto do apaixonado à sua amada o amor com que Jesus ama a Igreja. Antero, por sinal, escolheu um fragmento em que fala a amada.
O soneto tem por título «A Sulamita», que é personagem da obra original, e começa com umas palavras da amada, em latim que, traduzidas, dizem: Eu durmo, mas o meu coração está desperto.

A SULAMITA

Ego dormio, et cor meum vigilat
Cântico dos Cânticos

Quem anda lá fora pela vinha,
Na sombra do luar, meio encoberto,
Subtil nos passos e espreitando incerto,
Com brando respirar de criancinha?

Um sonho me acordou… não sei que tinha…
Pareceu-me senti-lo aqui tão perto…
Seja alta noite, seja num deserto,
Quem ama até nos sonhos adivinha…

Moças da minha terra, ao meu amado
Correi, dizei-lhe que eu dormia agora,
Mas que pode ir contente e descansado,

Pois eu tão cedo adormeci, conforme
É meu costume, olhai, dormia, embora,
Porque o meu coração é que não dorme…

Como se vê, é uma bela promessa de amor, da parte da jovem Sulamita.
Sobre os sonetos era isto que tinha a dizer, mas vou tecer ainda unas considerações sobre o nome Jacob, que apareceu no soneto de Camões.
Entre os apóstolos há dois que em grego e latim têm o nome de Jacob - mas não em português. Vamos ver o que se passou.
Isto tem a ver com a palavra santo. A forma feminina de santo serve para qualquer mulher: santa Ana, santa Isabel, santa Maria, santa Teresa… Mas não é assim na forma masculina. Dizemos santo António, santo Hilário, santo Agostinho, mas são Pedro, são Paulo, são Tomás…
Que se passa então com o Jacob? Em latim, como em grego, este nome lia-se Iácob. Então deveríamos ter santo Iácob. Mas a evolução fonética popular foi transformando a expressão, talvez assim: Santiacob > Santiaco > Santiago. Depois, separou-a outra vez em duas palavras e ficou são Tiago. E então aqueles apóstolos ficaram a ser Tiagos.
De Iácob também derivou Jaime, em português, e os nomes correspondentes, por exemplo, em inglês, James.
Pelos vistos não faz grande diferença para a evolução da palavra que o nome dos apóstolos fosse de facto, na origen, Iácobo e não propriamente Iácob.

terça-feira, 18 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 04

O poema que trago desta vez é de Bocage. Em Bocage, que morreu em 1805 com apenas 40 anos, pode-se dizer que coexiste um poeta grandiloquente e culto que trata temas amorosos, da actualidade ou outros; um poeta repentista, popular e satírico; e um poeta religioso entusiasta.
A cantata que vou ler intitula-se
À Puríssima Conceição de Nossa Senhora e consta de uma primeira parte em verso sem rima, longo, embora a espaços intercalados por versos mais breves, e uma parte final em quadras rimadas muito simples.
Na primeira começa por nos contar uma grandiosa visão de Nossa Senhora; a seguir descobre-se que aquela excelsa figura vai calcar aos pés o dragão infernal, como no painel do altar-mor da Matriz. Por muito que a serpente se defenda, acaba vencida sob a força misteriosa, mas indomável da Imaculada. Este combate concretiza o anúncio que Deus faz à serpente no princípio do Génesis de que a mulher lhe «esmagará a cabeça».
Comecemos pela majestosa, etérea visão da Imaculada:


Que espectáculo, ó céus! Eu velo?... Eu sonho?...
Que diviso!... Onde estou!... Purpúrea nuvem
Ante os olhos atónitos me ondeia
E chuveiros de luz despede à terra!
Mais bela que o fulgor que ao sol percorre,
Alta matrona augusta,
Do vapor luminoso
Que os Zéfiros detêm nas ténues plumas,
Quão risonha contempla o baixo mundo!
Áureas estrelas congregadas brilham
No rútilo diadema
Que a fronte majestosa Lhe guarnece;
Áureas estrelas semeadas brilham
Nas roçagantes vestes,
Cor do estivo clarão que filtra os ares!
De alados génios cândida falange
Reverente A ladeia,
E pelas níveas dextras balançados,
Pingue, flagrante aroma, em honra à diva,
Os fumosos turíbulos derretem…

É natural que as pessoas tenham alguma dificuldade em entender esta linguagem, mas ela fala duma visão da Imaculada que vem numa nuvem, conduzida por anjos, que A incensam.
Segue-se agora o combate em que o dragão infernal é derrotado:


Mas que feroz dragão lhes jaz às plantas,
Sangue a boca medonha, os olhos fogo!...
Rábido arqueja, túmido sibila,
Baldadas forças prova
Contra o pé melindroso
No colo inerme, a cerviz calcada,
Que rubras conchas escabrosas forram:
Enrosca, desenrosca a negra cauda
E em hórridos arrancos desfalece…
Oh, triunfo! Oh, mistério! Oh, maravilha!
Oh, celeste heroína! A sacra turma,
Os entes imortais que Te rodeiam
Modulam tua glória em altos hinos
Que entre perfumes para os astros voam…
Eis no leito arenoso as vagas dormem,
Rasas cedendo à música divina:
Pio ardor pelas fibras me serpeia
E encurvado repito os santos versos:

Obtida a vitória, o poeta entoa um canto triunfal. Ele poderá ser adaptação dum hino litúrgico que eu não sei identificar. É inteiramente diferente do que precedeu: linguagem muito simples, em quadras de verso curto e rimado:

Ó Virgem formosa,
Que domas o Inferno,
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.

Ilesa notaste
Do mundo o naufrágio,
Da culpa o contágio
Por ti não lavrou.

Nas tuas virgíneas
Entranhas sagradas,
Do Céu fecundadas
O Verbo encarnou.

A grande vitória
Do género humano
Contra este tirano
De Ti começou.

Depois de lograres
Triunfo completo,
Cumprido o projecto
Que o Céu meditou,

Cresceram nos astros
Os vivas e os cantos,
E as fúrias, os prantos
O abismo dobrou.

Ó Virgem formosa
Que domas o Inferno
Criou-Te ab aeterno
Quem tudo criou.

Duas observações sobre estes versos: a quadra inicial repete-se a concluí-los; em cada quadra o segundo verso rima sempre com o terceiro, sendo brancos o primeiro e o quarto, que termina sempre em ou.
Repito, a cena que Bocage evoca é a que está representada no painel do altar-mor da Matriz; aquela pintura, se for de origem, é anterior de alguns anos, mas não muitos a este poema.
O Bocage deste poema não é bem aquele a que as pessoas estão habituadas.

segunda-feira, 17 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 03

Vou hoje ler uma versão versificada, rimada e ligeiramente acrescentada do Magnificat. Augusto Gil (1873-1929) não é propriamente o autor do poema, adaptou-o. Ele é um desses poetas de quem era frequente falar-se antes do 25 de Abril de 1974 e que é hoje quase completamente ignorado. O poema intitula-se Magnificat, pois é o canto de Nossa Senhora versificado. Não chega a ser uma paráfrase, isto é, uma espécie de variação sobre o tema. «Magnificat» é a palavra com que o texto começa na sua versão latina. Vamos ouvi-lo:

MAGNIFICAT!

A minha alma engrandece,
Glorifica o Senhor!

E todo o meu espírito estremece
E crepita e exulta e resplandece
Em Deus, meu Salvador!...

Beijo de orvalho na folhinha de erva
Baixou Deus da vertigem do infinito
Por sobre mim, sua humilhada serva,
A eterna luz do seu olhar bendito...

E fiquei para sempre iluminada
Nesse piedoso e límpido clarão!
E hão-de chamar-me bem-aventurada
Sempre! de geração em geração . ..

O seu nome é sagrado:
E o seu poder que nunca terá fim
(Por ter em mim poisado)
Não vistas maravilhas fez em mim!

E aos que o temem e a quem dele implora
Misericórdia e protecção clemente,
Deus encaminha-os — pela vida fora
E sempre, eternamente...

Manifestou a força do seu braço
E aos vãos, aos de orgulhoso pensamento,
Desfê-los — como a poeira, pelo espaço,
No turbilhão do vento...

Derruiu tronos e reis — pô-los de rastros...
— E aos humildes ergueu-os para os astros!
Deixou os ricos sem riqueza e nome
— E encheu de bens os que sentiam fome!

Com desvelado e carinhoso amor,
Protegeu Israel, seu servidor,

Marcou-lhe os firmes passos com sinais
De Bênçãos e clemência,
Conforme prometera a nossos pais,
A Abraão e a toda a sua descendência...

E eis que será perpetuamente assim
Nos séculos dos séculos sem fim!...

Como se sabe, o Magnificat original é canto de louvor e gratidão com que Nossa Senhora responde à saudação da sua prima Isabel, que a declara “bendita entre as mulheres”, isto é, a mais notável das mulheres. S. Lucas não estava lá, para A ouvir, mas procedeu como era uso dos historiadores do tempo, reconstituindo o que poderia ter sido o cântico original, se é que não ouviu mesmo Nossa Senhora sobre o assunto.
É curioso notar que este cântico tem muito evidentes aproximações a um outro, muito antigo, que vem no livro Primeiro de Samuel e atribuído a uma senhora de nome Ana.
S. Lucas distingue-se dos outros evangelistas ao menos por dois traços: é o mais mariano de todos eles e o seu evangelho é atravessado por um radicalismo muito curioso.
Já aqui no Magnificat se diz Deus abaixou os poderosos e exaltou os humildes, mas isto confirma-se inteiramente na sua versão das bem-aventuranças, onde os ricos e os poderosos são alvo da admoestação mais severa. Mas ele é também o evangelista do Filho Pródigo, que depois de malbaratar tudo o pai abraça, e do episódio do Bom Ladrão, a quem Jesus promete «hoje» o Céu só porque ele lho pediu numa atitude de respeito e arrependimento.

domingo, 16 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 02

Antero de Quental (Ponta Delgada, 18 de Abril de 1842 - 11 de Setembro de 1891) é autor de alguns dos melhores sonetos de temática religiosa da nossa literatura e também dos mais conhecidos, embora ultimamente pouco estudados nas escolas. Sonetos que foram escritos em Vila do Conde. Vejamos o que se intitula À Virgem Santíssima:

À VIRGEM SANTÍSSIMA

Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia

Num sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza…

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade…
Era uma outra luz, era outra claridade,
Que até não sei se as há na natureza…

Um místico sofrer… uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira…

Ó visão, visão triste e piedosa,
Fita-me assim calada, assim chorosa…
E deixa-me sonhar a vida inteira!

Esta Senhora das Dores, ou talvez da Piedade, é verdadeira por ser cristã e evangélica, mas Antero não acreditava no que aqui escreveu. O soneto é uma delicadeza sua para a esposa do seu amigo Oliveira Martins.
A Coimbra da sua juventude, revolucionária e blasfema, afastou do cristianismo o Antero educado em meio familiar católico; mas este cristianismo permaneceu latente nos escanos da sua alma.
Este poema e o seguinte, Na Mão de Deus, aparecem nos Sonetos lado a lado com alguns textos verdadeiramente heterodoxos.

NA MÃO DE DEUS

Na mão de Deus, na sua mão direita,
Descansou afinal meu coração.
Do palácio encantado da Ilusão
Desci a passo e passo a escada estreita.

Como as flores mortais, com que se enfeita
A ignorância infantil, despojo vão,
Depus do Ideal e da Paixão
A forma transitória e imperfeita.

Como criança em lôbrega jornada,
Que a mãe leva ao colo agasalhada
E atravessa, sorrindo vagamente,

Selvas, mares, areia do deserto…
Dorme teu sono, coração liberto,
Dorme na mão de Deus eternamente!

Antero foi também um apaixonado, como Florbela Espanca; como ela, também sentiu uma profunda desorientação na vida, procurou a luz por que ansiava e entreviu-a; como ela, também acabou tragicamente.

sábado, 15 de março de 2008

MOMENTO POÉTICO 01

«País de poetas», como lhe chamou se não erro António Nobre, Portugal tem uma tradição poética notável e por isso tem também muita poesia de tema religioso. "Momento Poético" irá ser uma breve rubrica de poesia desta temática.
Embora eu não conheça nenhuma antologia que recolha o melhor deste filão artístico, consegui já reunir uma colecção significativa. Espero assim trazer aqui alguns dos melhores trechos produzidos pelos nossos poetas.
Vou começar com um pequeno poema, em três quadras, de Afonso Lopes Vieira, que se intitula «A Senhora dos poetas».

A SENHORA DOS POETAS

Peregrinos, mareantes,
Sejam do mar ou dos ares,
Todos te deram um Nome
Para melhor escutares.

O pecador, os aflitos,
Os faltinhos de saúde,
Todos te ergueram um Nome,
Como ao rio um açude.

Porquê, em alta montanha,
Entre lírios e violetas,
Não haver uma ermidinha
À «Senhora dos Poetas»?

Afonso Lopes Vieira

Creio que foi uma boa opção começar com este poema; não que ele me pareça de qualidade especialmente rara, mas pela ideia da «ermidinha / à Senhora dos Poetas». Nossa Senhora seria sem dúvida dotada de grande pendor poético, como é comum nos místicos – e Ela está à frente deles e a uma incomensurável distância.
Afonso Lopes Vieira (1878-1946) foi conhecido como o Poeta do Belinho, do nome da freguesia esposendense onde viveu largo período.

Vou agora ler um soneto de Florbela Espanca. Tem por título «Quem sabe?...»

QUEM SABE?...

Queria tanto saber porque sou Eu!
Quem me enjeitou neste caminho escuro?
Queria tanto saber porque seguro
Nas minhas mãos o bem que não é meu!

Quem me dirá se, lá no alto, o céu
Também é para o mau, para o perjuro?
Para onde vai a alma que morreu?
Queria encontrar Deus! Tanto o procuro!

A estrada de Damasco, o meu caminho,
O meu bordão de estrelas de ceguinho,
Água da fonte de que estou sedenta!

Quem sabe se este anseio de Eternidade,
A tropeçar na sombra é a verdade,
É já a mão de Deus que me acalenta?

Florbela Espanca

O soneto mostra-nos Florbela (1894-1930) em grande desorientação. E parece que passou assim muito tempo d a sua vida.
Ela possuía uma voz poética vibrante e original, e isso está aqui nestas exclamações e interrogações, sempre dramáticas, e nestas imagens.
Apesar de alguns pormenores manifestamente heterodoxos, há no soneto um anseio de Deus que faz lembrar aqueles versos bíblicos que dizem: «como o veado anseia palas águas correntes, assim minha alma suspira por vós, ó meu Deus». Na «estrada de Damasco», como S. Paulo, caminha cega, mas há um vislumbre de luz na «mão de Deus» que julga acalentá-la.

quinta-feira, 13 de março de 2008

“Felizmente há luar!”

Felizmente há luar! é uma peça de teatro de esquerda, revolucionária, escrita sob influência directa do teatro épico de Brecht.
O autor escolhe uma época em que o poder opressivo, absolutista, limitava a liberdade de expressão (final da 2ª década do séc. XIX), tomando-a como espelho da situação que se vivia na actualidade (1960), sob o regime de Salazar. A obra denuncia as prepotências do regime absolutista de modo directo e naturalmente as do regime que então vigorava de modo indirecto.
O teatro épico é um teatro para o povo, didáctico e não visa promover a empatia com a acção que decorre no palco. Recorre a processos elementares (por comparação com o teatro rico tradicional), valorizando a luminotecnia e a sonoplastia. Épico quer dizer narrativo, o que é contraditório com a noção tradicional de teatro. Mas, à imitação de Bretch, que pretende o distanciamento face à acção desenvolvida no palco, a narração pode aqui contribuir para desfazer a ilusão da realidade.
Em Felizmente há luar! não há voz off (narrador), mas é dada importância em especial à luminotecnia: a passagem de uma cena para a outra não implica a saída de personagens pelos bastidores, mas apenas o apagar e o acender de luzes apontadas na direcção dessas personagens.
Gomes Freire de Andrade, o herói, foi um mercenário ao serviço de Napoleão e serviu ainda Catarina da Rússia. Após a derrota de Waterloo, pede e obtém a reabilitação (ele tinha servido à ordem do responsável pelas Invasões Francesas, Napoleão, ou seja, perante o país era visto como um traidor) e a readmissão nas fileiras (exército). Num país como Portugal, muito atrasado, com graves dificuldades económicas, onde o exército, acabadas as guerras ainda tinha um elevado número de homens em armas, cujo rei, D. João VI, se encontrava no Brasil, para onde era drenada parte significativa dos impostos recolhidos pelo Estado, Gomes Freire de Andrade, que seria um militar popular, representava facilmente os ideais da liberdade, fraternidade e igualdade que a Revolução Francesa tomara como lema. Os governadores do reino, a quem qualquer vento de revolução fazia temer (e com razão), perante os boatos e a agitação, tomam a medida drástica de eliminar aquele que poderia ser o seu natural cabecilha.
O primeiro acto mostra-nos em cena, inicialmente, camadas populares maltrapilhas; e depois, os governadores, que com muito pouco senso moral decidem eliminar Gomes Freire de Andrade.
Este acto é bastante pobre em termos dramáticos.
O segundo acto é mais vibrante e é dominado pela figura Matilde, que defende o seu companheiro (era amante de Gomes Freire de Andrade), com grande determinação e nobreza moral, face aos governadores (que convenientemente são retratados como corruptos e imorais). Por vezes tem-se a sensação de que esta heroína é um pouco anacrónica no seu papel feminino e reivindicador (parece mais uma revolucionária dos tempos modernos, com grande conhecimento teológico).
Gomes Freire de Andrade é enforcado e depois os seus restos mortais são queimados.
O título “Felizmente há luar!” origina-se de uma carta escrita na altura da execução em que se dafirmava que era bom que houvesse luar para que o povo de Lisboa, mesmo à distancia, pudesse ver o clarão que destruía e destruiria qualquer veleidade revolucionária. Na peça, é dada à frase um entendimento irónico: felizmente há luar e o povo de Lisboa, vendo que o seu herói se manteve firme na defesa do seu ideal até à morte, aprenderá que vale a pena lutar contra os opressores.
Nunca esquecer que toda a obra funciona como espelho da situação política vivida ao tempo em que foi escrita (ditadura de Salazar), o que é indispensável para valorizar nela o carácter épico ou brechtiano.
Curiosidade: ao tempo da Primeira República a data da morte de Gomes Freire de Andrade era feriado nacional, honrando a sua pretensa grandeza de herói exemplar.