quarta-feira, 16 de julho de 2008

MOMENTO POÉTICO 22

Camões, já o disse, tem muita poesia de tema religioso. Vou ler hoje dois textos de carácter hagiológico, isto é, em que se fala de santos. O primeiro é um soneto em louvor de S. Francisco de Assis. Vamos ouvir:

Como louvarei eu, Serafim santo,
Tanta humildade, tanta penitência,
Castidade e pobreza e paciência,
Com este meu inculto e rude canto?

Argumento que às musas põe espanto,
Que faz muda a grandíloqua eloquência,
Ó imagem que a divina Providência
De Si viva em vós fez pera bem tanto!

Fostes de santos uma rara mina;
Almas de mil a mil ao Céu mandastes
Do mundo, que perdido reformastes.

E não roubáveis só com a doutrina
As vontades mortais, mas a divina,
Pois os seus rubis, cinco lhe roubastes.

A imagem dos cinco rubis refere-se aos estigmas, às marcas das cinco chagas de Cristo, com o seu sangue, que S. Francisco teve impressos.
O segundo texto é um fragmento dum poema sobre Santa Úrsula. Esta santa é alemã, de Colónia. Verdadeiramente, quase tudo na sua vida está envolto em lenda. Mas isso não é tão importante como possa parecer: se houve tantos mártires anónimos, ela, e outros e outras como ela, representa-os.
Esta mártir mereceu grande veneração no mundo anglo-saxónico. Camões escreveu sobre ela uma biografia poética, em estrofes de oitava-rima, como as d’Os Lusíadas. As estrofes que vou ler mostram-no-la momentos antes de avançar para o martírio.
Camões é o poeta do amor, por excelência. Embora aqui tenhamos o amor divino, a sua voz está tão afinada como é costume, se não melhor.
Repare-se que os dois últimos versos das estrofes são um refrão (repetem-se) e dão a ideia geral do conjunto:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Há aqui um jogo de conceitos: “o que desejo” e “o que não vejo” são naturalmente o rosto de Cristo glorioso.

Amor, divino Amor, Amor suave,
Amor, que amando vou toda rendida:
Com quem não há na vida pena grave,
Sem quem glória real não há na vida;
Amor, que do meu peito tens a chave,
Amor, de cujo amor ando ferida:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que de amor cheio e de brandura,
De amor enches est’alma saudosa;
Amor, sem cujo amor e formosura,
Não pode nunca haver coisa formosa;
Amor, com cujo amor anda segura
Uma vida tão fraca e duvidosa:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que por amor Te dispuseste
A restaurar o mundo errado e triste;
Amor, que por amor do Céu desceste;
Amor, que por amor à Cruz subiste;
Amor, que por amor a vida deste;
Amor, que por amor a glória abriste:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que mais e mais sempre te aumentas
No coração que lá contigo trazes;
Amor, que de amor puro te sustentas
No fogo em que tu mesmo arder me fazes;
Amor, que sem amor não te contentas,
De tudo com amor Te satisfazes:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja, Amor, o que não vejo?

Amor, que com amor me cativaste;
(Se livre pode ser quem não cativas)
Amor, que em tais prisões m'asseguraste
As esperanças dantes fugitivas:
Amor, que suspirando m'ensinaste
A derramar por Ti lágrimas vivas:
Quando verei, Amor, o que desejo,
Para que veja. Amor, o que não vejo?

É um texto muito poético, muito bonito, mas também muito conceituoso, ao modo por exemplo de Amor é fogo que arde sem se ver ou de certos poemas de S. Teresa de Ávila.

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