terça-feira, 15 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 11

Na poesia de Camões, como na de Bocage e de outros poetas, há um antes e um agora, definidos por uma adesão determinada e datada à fé. Na Sôbolos rios, Camões fala da sua palinódia, do seu canto novo, de retractação:

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.

António José Saraiva escreveu uma vez que na vida do poeta terá ocorrido uma espécie de “elección inaciana, de golpe macedónico”, de uma conversão ao modo de alguns dos primeiros jesuítas. Mas os poemas camonianos não estão datados e por isso não podemos definir um momento preciso para essa conversão.
Mas Os Lusíadas tem data de publicação. E aí a adesão ao Cristianismo é entusiástica.
O soneto que vou ler, pelo tom que o percorre, parece do antes: o poeta expõe nele uma visão da vida onde se não sente uma mínima presença iluminadora da fé:

O dia em que nasci moura e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar;
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o Sol padeça.

A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe o próprio filho não conheça.

As pessoas pasmadas de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.

Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu.

Este soneto tem influência evidente do livro bíblico de Job e das narrativas apocalípticas. É um texto em que a dor de viver, o sem sentido do mundo são expressos com uma força inaudita. Em casos como este, parece-me que Camões tem a dureza dum Miguel Ângelo, com a sua conhecida terribilitá.
Veja-se agora como o soneto lido está distante destes versos das redondilhas de Sôbolos rios:

Tanto pode o benefício
Da Graça, que dá saúde,
Que ordena que a vida mude:
E o que eu tomei por vício
Me faz grau para a virtude.

E faz que este natural
Amor, que tanto se preza,
Suba da sombra ao real,
Da particular beleza
Para a Beleza geral.

Fique logo pendurada
A flauta com que tangi,
Ó Jerusalém sagrada,
E tome a lira dourada
Para só cantar de ti;

Não cativo e aferrolhado
Na Babilónia infernal,
Mas dos vícios desatado
E cá desta a ti levado,
Pátria minha natural.

E se eu mais der a cerviz
A mundanos acidentes,
Duros, tiranos e urgentes,
Risque-se quanto já fiz
Do grão livro dos viventes.

E, tomando já na mão
A lira santa e capaz
Doutra mais alta invenção,
Cale-se esta confusão,
Cante-se a visão da paz!

Ouça-me o pastor e o rei,
Retumbe este acento santo,
Mova-se no mudo espanto;
Que do que já mal cantei
A palinódia já canto.

As chamadas redondilhas de Sôbolos Rios são uma paráfrase, uma variação sobre o Salmo 120, onde ouvimos os judeus, cativos em Babilónia e saudosos da Templo de Jerusalém; aí podiam cantar livremente a gratidão ao seu Deus. Mas o poema Camões é complexo. Babel ou Babilónia representam os anos desregrados que o oprimiram, Jerusalém, onde fica Sião, é o Céu.
Mas está aqui também nítida influência do filósofo Platão.

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