sábado, 12 de abril de 2008

MOMENTO POÉTICO 10

Este 10º momento poético é dedicado a Bocage (1765-1805). E ele merece-o. Embora eu só conheça pela rama a sua biografia, é sabido que morreu muito jovem (40 anos) e que no final da vida viveu uma sincera e profunda conversão. Isto deslegitima logo muita coisa que se diz e se escreve sobre ele. Mas há mais.
Vamos agora ouvir este conhecido soneto seu:

MEU SER EVAPOREI NA LIDA INSANA

Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões que me arrastava.
Ah, cego, eu cria, ah, mísero, eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana!

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe a Natureza escrava
Ao mal que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos,
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos!

Deus, ó Deus!... Quando a morte a luz me roube,
Ganhe num momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Vamos distinguir duas coisas no soneto, o reconhecimento sincero de que o poeta falhou a vida e a imaginária hiperbólica usada.
Em relação ao arrependimento, ele revê a vida passada e reconhece o seu falhanço:
Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel de paixões que me arrastava.
Esta alma, que sedenta em si não coube,/No abismo vos sumiu dos desenganos.
Etc.
Quanto à linguagem hiperbólica, vejam-se estes exemplos:
Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel de paixões que me arrastava.
De que inúmeros sóis a mente ufana/Existência falaz me não dourava!
E ainda estas apóstrofes declamatórias:
Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Deus, ó Deus!...
Mas o poema desemboca na declaração de que o autor reconhece um antes e um agora:
Ganhe num momento o que perderam anos,/Saiba morrer o que viver não soube.
O antes é o período da vida falhada ("viver não soube") e o agora ("saiba morrer") é o do arrependimento e da conversão.
Mas há um segundo soneto onde o tema do arrependimento regressa ainda com mais força, é o que começa Já Bocage não sou: à cova escura.

Já Bocage não sou, à cova escura
Meu estro vai parar desfeito em vento.
Eu aos céus ultrajei; o meu tormento
Leve me torne sempre a terra dura.

Conheço agora já quão vã figura
Em prosa e verso fez meu louco intento.
Musa, tivera algum merecimento
Se um raio da razão seguisse pura!

Eu me arrependo: língua quase fria
Brade em alto pregão à mocidade
Que atrás do som fantástico corria:

Outro Aretino fui!... A santidade
Manchei!... Oh, se me creste, gente impia,
Rasga meus versos, crê na eternidade!

Bocage não escreveu este soneto, ditou-o no leito da agonia. Mas no tom declamatório, empolado, continua igual a si mesmo
A segunda parte do soneto é um grito dirigido à juventude para que se acautele: "A santidade/Manchei!... "

Mas reparemos agora no verso final:

Rasga meus versos, crê na eternidade!

Uma vez ouvi na Escola Secundária de Eça de Queirós um professor de Coimbra a defender que se não devia publicar A Tragédia da Rua das Flores de Eça de Queirós, porque ele a não publicou e integrou o que no livro havia de mais válido n’Os Maias. Eu penso que a razão invocada é válida, mas estas palavras tão claras de Bocage, ditadas do leito da agonia, não serão ainda muito mais para respeitar? Com que direito, carregando nas cores, se divulga um Bocage que nada tem a ver com este “testamento”? Eça não disse nada que se parecesse com isto.
Antes de terminar, porque, se calhar, não voltarei a Bocage, quero ler o terceto final do seu Hino a Deus:

Nunca impiedade em mim fez bruto ensaio;
Sempre (até das paixões no desatino)
Tua clemência amei, temi Teu raio.

Muito mal se pode tratar um homem…

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